the bent-neck lady
Me ocorriam as imagens mais lindas.
Uma aquarela viva em vermelho colonizava os ladrilhos. Era evidente ser obra de deus o chão de contraste. Muito longe, como dentro de um túnel, eu ouvia o chamado de alguma dor. Agora não, pensávamos em uníssono eu e o carmesim, quase os mesmos. Extasiada e transbordante dos imediatamentes. Eu não era pernas ou punhos. Era um vórtex hermético, contente em si mesmo, está quase acabando, as palavras pontudas já não encontram pele, e a pele já não encontra o tremor habitual, o abandono perdia seu ninho e eu me deliciava com seus guinchos. Era eu um pálido ponto vermelho.
E lá muito longe, depois das mucosas e das vontades, a verdade insistia no barulho, chamando atenção. e não uma dor, mas uma espécie de pressão ao contrário, me ninava macia e letárgica, no engenho do drenar. Quase lá, querida. E me acarinhava o que há pouco era tal corpo; descansava em si meu córtex aleijado, selando minha testa com lábio de espinho. Quase lá, querida.
Os pássaros estavam estranhos - cacofônicos. sugada à origem daquele disparate, eu já não flutuava. meus olhos baloiçavam como pêndulos, mas tudo ao redor era homogêneo e plúmbeo. os pássaros choravam e o pranto eu jamais deixaria de reconhecer. eu não ouvia mais a promessa carmesim. parecia outra vez vítima da gravidade, atada ao chão, suas faixas me enroscando muito obedientes.
mas foi apenas quando notei que finalmente apagaria que entendi que havia sido traída. inferno, tentei chorar. e isso é tudo.
sou Maria, sou Celeste, sou Miguel, sou A sou B sou o número 11 sou o caralhésimo a que você é apresentada numa só semana e que ensaia a postura falsamente solidária diante de mais um ser humano reduzido às amarras. Me pergunto se os demais chegam tão estupificados ou desesperados a ponto de crer nesse teatro vagabundo. Eu tinha de novo meu nome numa caixinha de comprimidos, numa caneca de plástico e numa cestinha de suprimentos básicos que permanecia trancada até segunda ordem. Numa rotina fabril, de movimentos fadados à repetição e a padronização, eu tinha horário até mesmo de sangrar; trocavam meus curativos às 8h e às 20h, e todos os dias eu era apresentada a cores anarquistas, profusão de amarelos e verdes e roxos e azulados e violetas e vermelhinhos que os manuais não reconheciam. Eu sentia aquele certo "ai..." na expressão dos de-branco ao desenrolarem as gazes, "ai" esse que resiste ainda que sutil mesmo no organismo treinado. "Ai" porque eu mesma fizera aquilo. "Ai" porque eu ainda sorria ante à visão.
Mas esse gosto e essa espirituosidade foram sucumbindo porque eu era a ponto de fundição, mas não de ferro; respondia às ordens antes mesmo que pudesse me criticar; minhas pupilas assentaram polidamente num só ponto e eu era adestrada, como um orangotango, a sorrir quando certos os estímulos. 3h por dia aprendíamos a fazer outras coisas com as mãos que não as que nos levaram até ali; construíamos porcarias ridículas perpetuando a tradição que subestima cobaias. decerto havia aqueles debilitados o bastante para se orgulharem de suas garatujas. e talvez esses fossem dali a salvação.
Contra a vontade, me tornava maleável, como um massinha infantil; e perdia o "quando" das palavras, enquanto me corriam as mãos puxando e desfazendo, beliscando, socando, enfiando, revirando ao avesso do avesso (que nunca será o lado certo). Quietinha, querida. Você é a macaquinha mais linda desse buraco, sabia?
Eles nos cuidam muito bem.
Amarraram meu cabelo num coque apertado, vesti calças. Percebi que os pássaros só ficavam por lá, como pequenas estátuas de palha, decorando as poucas árvores. Talvez fosse o ar, e estivessem catatônicos também. Nenhum som de fora e meus alhures se fizeram sepulcrais também. O fato é que minha avó costumava dizer que as aves dormem cedo; devagar eu descobri que os pacientes, ainda mais.
Aceitar-se paciente (ou cliente, como deseja o eufemismo capital) é abrir mão de um indeterminado e íntegro recanto de si, ao qual alguns chamariam "alma".
Em uma manhã, após tocarem os sinos, você nota que arrasta os calcanhares não ao modo de um adolescente preguiçoso ou de um velho caquético, mas de maneira demasiadamente típica daquela matriz; é esse passo que se espera; é nesse ritmo que se tensiona converter. E é minucioso o trabalho, deve-se admitir seu zelo pela fórmula e sua fidelidade teleológica: química contra química. Um crime cúmplice da solidão e salvo pelo anonimato: somos nada mais que o odor de têmporas chamuscadas, que as crostas de sangue seco cuja raspagem do assoalho faz cansar, que o suor antigo das colchas onde corpos simulam pulsar; àqueles a que rondam as moscas, os senhores dos vermes apressados. No percurso nos garantem o oblívio, e assim viramos espécimes exibíveis de procedimentos excelentes. E então, fisiológicos e docilizados, voltamos às ruas como Lázaros elétricos, reagindo e imitando, despreocupados da polissemia do ser que tanto nos suscitava orgia de sentidos.
Moça? Moça, tá tudo bem?
Quase esqueço os músculos que direcionam as íris. Sim, é que essa cor é estranha. Que cor é essa?
Conheço então tal expressão, costumo invariavelmente ser seu motivo; há em mim uma disposição para evocar o assombro.
Moça, isso é vermelho.
No meu pulso mora agora uma opaca espinha de peixe.
Estou eu, então e portanto, distante dos poréns: curada. curada, querida - os de-branco disseram em uníssono.
como magma que circunda o núcleo há éons, àquilo a que chamariam desastre natural se põe a dissolver as fronteiras. Foram erguidas muralhas labirínticas e sintéticas, muito eficientes como disfarces operacionais.
Soube do retorno quando do divórcio das palavras; o significado é sempre o primeiro que se vai.
Durante as vagas vidas inteiras nos juraram que uma imagem vale mais.
Sendo assim, dessa vez, limpo e seco da estranha cor; não era tão discrepante assim: tornei a construir porcarias ridículas com as mãos - coisa de sete espiras rígidas ao redor de seu próprio corpo. e então, assim como os mais debilitados, contemplei um instante meu feito e o ajustei tal qual um colar precioso. romperia graciosamente com a gravidade outra vez - salto que se faz eterno e tão logo um deboulé para cima, meus olhos num ponto fixo bem como foram treinados. meu coração partido disseram não existir: socava prantos a vácuo. então qual a onomatopeia de uma cervical partida?
Crec, respondeu o vermelho.
Me ocorria ser a imagem mais linda.