emanon,

 Emanon.


eu morri de medo de você.


sim, porque os pais sempre te usaram como mais uma das narrativas folclóricas para domesticar crianças no medo; era o “sim” compulsório, ou você.

arquétipos montados duma fisionomia juramentada grotesca, aos poucos decaíram peça por peça, porque,

no fim,

você é sobre sedução.

aos quinze eu te vi transpassando uma árvore que devia estar ali desde o início dos tempos, o Dito-cujo teria serpenteado naqueles galhos. clichês eram regra e por tal você usava um vestido preto, e o cabelo inacreditavelmente escuro era como uma coroa, muito leve, feita de anuns.

eu delicadamente assisti você. e fingi ter me assustado.

mais velhas você esqueceu propositalmente a luz do meu quarto acesa. me esgueirei pelo corredor e te descobri no centro exato do cômodo, sentada num banco vulgar, uma decoração própria de saudek. sua cabeça pendia como se da nuca falhassem vértebras e o cabelo cortinava o proibido. verbo foi assalto e não, eu não quereria a trivialidade de um nome porque sabia véus adentro que você me daria todos os batismos que 3 bilhões de anos terrestres já tentaram e falharam, toscos. até então não se desvelara tua irremediável estada aqui, pregressa à fisiologia do meu temor, antes mesmo da clarificação de que certas palavras não são pronunciadas, antes até da tua exibição como constância espectral incontestável, quando ainda não haviam poupado os esforços de te tornarem um mito. o que de ti eu ingenuamente contactava era através das ligações ébrias e passionais na madrugada, intentando ameaças sedentas por um amor esmolado e emergencial; o que eu especulava da tua natureza eram episódios barulhentos que sacudiam uma semana específica.


algo de nós duas se fez carne tocada e por uma fração de segundo chispas a flux de memórias, não como uma disposição linear e óbvia que admite ordenação passadopresentefuturo: de antemão eu vislumbrei de-dentro, como algo indizivelmente antigo, o lugar em que ambas nos encontrávamos depois. você ao lado do meu berço, velando meu sono; você agarrada à minha mão, eu sob tua fronte estéril a qual qualquer um julgaria inexpressiva, mas eu sei que você chora. ao inferno com essa de que a tua disposição atômica não é biologicamente capaz de por si produzir lágrimas quentes, porque eu sei que você chora como ninguém mais. e como não choraria?, uma vez que é a única no percurso evolutivo que trancafia em si todos os discursos indeferidos pelo espasmo derradeiro.

como tudo parido trancafiado me disseram: tende cuidado com ela. mas você reside na pré-entranha, jeito dos genes fazerem jus à treva. a despeito da sangria que se faça, esse tipo particular de bile negra não pode ser drenada. você me chama num timbre inumano que suspende o julgamento, e então me assegura de onde vim, qual meu volume condensado e Aquilo que eu preciso cumprir. sem cobranças ou coação, você apenas não permite refúgio no ilusório, e eu penso isso como bem digno da tua parte. sou grata.

ao longo dos anos nossos diálogos ensimesmados e institucionalizados, sem que de qualquer uma de nós carecesse articular as línguas, me aquietou o medo adestrado de te encontrar na mesma esquina. mantendo os metros no intervalo você particularmente aparecia mais esplêndida que nunca no curso de ancestrais e ascendentes. de uma estética da mais pura exaustão — própria daqueles incumbidos de manejar os corpos que saltam pra baixo —, cujas modas e tendências medíocres seriam incapazes de ditar ou replicar. olhos cinza contraditoriamente claros ainda que fundos, como o que não faz parte dessa física; o nariz imponente, como num busto de imperatriz. a boca explodindo a seiva que circula logo sob a película. pálida de olheiras e pálpebras inchadas, e as modestas rugas desvirginando em graça. que cresci demais pra ser levada a esmo, você pensou pra mim em ironia, porque todas as vezes que eu não te olhei foi simulação. ainda um feto esse terceiro olho foi sido rasgado um ósculo. e eu era de uma fé cega em você, naquela expressão de condolência e piedade fitando o horizonte inviável, como uma santa renegada pelos pecados daqueles a quem sacrifica.

sempre na mesma encruzilhada, hoje trazia consigo um crisântemo roxo. notei que roxo. sangrando bagunçado e nos consolamos assim, num encarar platônico e gentil, em respeito convencional pelas pessoas e coisas e compromissos que dependiam que cada uma se mantivesse no enquadramento destinado. não se mate, ditavam sem pronunciar, fingindo que a gênese do ato não era o desejo. e enquanto lutavam pra fazer disso maldição, ali só me tinha desperta a esperança.

você nunca nem mesmo me ordenou coragem, mulher, te dissolve e vai. como que sabe tudo desde o unicelular, você era pura paciência. esperou que as convulsões me tropeçassem até a esquina, quando fui esse império de secreção, já não enxergando senão turvo e da boca um líquido escuro e grosso, por onde me arrastasse deixava a prova gosmenta do choque dos órgãos.

recolheu minha cara desmanchada nas duas mãos em concha, como quem guarda um tesouro. nua, só a vergonha me cobria o corpo, você me envolveu no manto pesado de rainha, a poeira subiu densa; tua pele cintilou imediatamente quando exposta à atmosfera, incidindo em milimétricos focos de incêndio, como papel de uma longa e última carta não lida. ainda assim expressão era a mesma enquanto se desfazia às faíscas que planavam um instante acima como vagalumes.

“você sabe a diferença entre amor e obsessão? e entre obsessão e desejo? você pensa que esse sentimento pode durar pra sempre? Deus. eu espero que sim”

e só quando tombei já não senciente no teu colo, nem mais mulher nem criatura — mas apenas aquela criança que pôs-a-nu o “não” — eu diria que aquele foi o momento dentre eras, Emanon, que enfim puderam te assistir torcer um quase a boca num ricto.

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