floema
à beira da avenida acompanho
o disperso ir-e-vir de automóveis
muito mais velozes do que meus olhos débeis podem-
e cravo os pés no chão
eles que me sussurram avançar
e avançar
atravesso a passarela
e jamais contenho meu olhar curioso para baixo
namoro a altura como um par prometido
e aguardo a graça de cair
aguardo a graça
de cair
continuo dobrando lençóis compridos demais
me omitindo sob os panos
e os imagino em um nó muito seguro
protegendo minha garganta
da timidez dos quereres profanos em elipses
conto com rigor as pílulas que ditam as horas
e as engulo como se alimentos fossem a um desnutrido
fantasiando chegar às centenas
de modo a mal caber nas palmas
por maiores que sejam minhas mãos,
elas não são-
marco de unhas cheias de dedos e dedos
repletos de ódios pluralícios
o pescoço carcomido e nu, exposto
disponível
sedento por-
e imploro que a besta em mim não lute
contra a volição
e que os reflexos de autopreservação sejam falhos
mais uma vez
perdidas foram as dores pérfidas dos detalhes
e o tal-todo condensado perfura
como arma branca que enegrece pela espera
em pé, na cozinha,
encaro com carinho o forno
que seduz como uma redoma, uma
manjedoura anatomicamente disposta
a acalentar minha cabeça
calculo lacrar quaisquer espaços em portas e janelas
e intoxicar a casa como um organismo nefasto
-- em ortotanásia
ao passo que escrevo me contenho
de agarrar em fúria todos esses papéis
uni-los em uma fogueira improvisada
cuidando que não hajam frestas por onde escape
(até por onde eu mesma escape)
e eu me sente encolhida ao vértice desse
minúsculo ninho
até que o torpor cumpra sua natureza
até que o torpor - por favor,
já não vejo árvores sem imaginá-las como pinheiros de natal
nas quais eu seria um enfeite dependurado
ninado a favor do vento
também já não observo o vasto oceano que veste o litoral
sem me encontrar como a peça que tanto lhe cabe
afundando lenta e gentilmente, como uma garrafa
cujo pergaminho contido
jamais será lido
e quanto aos ratos e insetos
que sorte têm certas pragas
de serem facilmente eliminadas
e um revólver abençoaria
minhas mãos em concha,
tal como uma pérola.
e sonho a derradeira melodia de um estampido
a nota vazia que
decepa toda percepção pela raiz
hajam crânios ou meninges no meio caminho
um outro forame magno
que faz voar aos milagres os miúdos
em metrôs já não invisto
uma vez que só os tenho como métodos queridos
-- um só solavanco e nada mais haveria que um só solavanco
e estariam as frações do que me empilhava mastigadas pelos trilhos
atrasando a folha de ponto de outros trabalhadores
putos comigo
a criatura não mais identificável
que fez senhoras desmaiarem na plataforma
-- um alvoroço mal parido
em motos exijo os 100km/h
confiando nas estatísticas sobre acidentes fatais
e destravo o capacete disfarçadamente
mentindo a mim que é só questão de
frescor
e aos sábados, sim, as porcentagens de álcool
pois é preciso a coragem do imediatismo
para que todo o amor que jurei doar não me baste mais como freio
e eu não lembre daquela que me aguarda em casa com as mãos unidas em prece
e os joelhos chagados de dobrarem ao chão
que eu possa me entregar à carência de julgamento e bom senso
cumprindo esse predicativo do sujeito
que me mutilaram da sintaxe
e quaisquer fragmentos de construções,
entre cerâmicas e vidros quebrados, pedras irregulares, hastes de ferro
me parecem instrumentos sagrados
com os quais eu cavaria as artérias buscando
o tesouro e o jorro
e mesmo a paisagem mais sublime
no topo de edifícios onde o pôr do sol é um luxo particular
não passam do mais terno plano
de a mim afundar contra resistência do ar
caindo em graça
descendente e aguda como um minúsculo meteoro
que respeita sua órbita
e quando ainda ousarem falar em deus
que creiam que se fez o destino por ele escrito
por vias tortuosas
que me destroçaram a coluna
e por si só descubram o que diabos existiu de certo nisso
e que esse deus permita que o que restar do casulo
se transforme em vida para os cordeiros
que, contrários a mim,
não se sacudiram tanto
até serem notados pelos lobos
e pela primeira vez
desde meu choro inaugural,
eu ganharei vida em abundância
constando esfacelada,
em outros fluxos sanguíneos
assim finalmente ungida em benção
-- um batismo