o deus no breu

Ele disse que eu era um pouco desequilibrada, e, honestamente, não sei que espécie de reação esperou.
Agora eram quase 2h da manhã e eu não dormia. Disposta na cama como um bloco de concreto esquecido, sentia cada ponta minha gelar, como uma estrela de davi ou um pentagrama invertido. Mas ali ele, onipresente e onisciente - os olhos sem pálpebras ou íris ou cílios disciplinadamente arregalados, um domo sobre o planeta. Não há deus que resista ao escuro; e por todo vértice avesso o breu reinava absoluto, alcançando onde o olho não conhece e dissolvendo o antigo espaço. E nada comprovava que o mundo continuava ali.

Primeiro de todas as coisas, lar de qualquer vida. Avançava minhas mãos convulsas descobrindo a disposição dos móveis. Tarde demais para buscar o interruptor.
O que eu posso dizer é que sim, antes dos demônios e das maldições, não há maior horror do que o de uma mulher louca tentando ser amada.
O limite entre o sintoma e a idiossincrasia, entre o circo de aberrações da doença e as respostas fiéis à identidade. E ser a si deslancha num demérito, uma mutilação inenarrável já que não se descansa de perceber o que falta. E como membros fantasmas, os palpites sobre essas perdas coçam e arranham. O vão é real.
Eternamente ancorada em desculpas. Tanto a dizer e nenhum verbo a declarar - e esse calar azedo, a garganta como um túnel a se estender progressivamente.

Demais. O pecado do excesso versejando nas veias, pulsando vivo como qualquer outra criatura condenada. E se eu amava - amava desesperada e estupidamente, e era o que acontecia com a linha do seu pescoço, um desenho delicado e elegante contrastando com toda a brutalidade inerente ao tornar-se homem, a base salpicada de pontos marrons. "Como um tiro de 12", você brincava. Sim, você era meu pequeno cristo, abraçando leprosas que construíam altares ao lado da cama pra você. era meu cristo quando eu implorava salvação. quando eu era uma menina malina, geniosa. quando eu precisava da sua ira e do seu santo castigo pra ser digna do teu amor. quando feria meus joelhos fazendo teu gosto. 

e sua garganta doce e macia, entre minhas capiongas patas, parecia o supremo milagre. trançei as unhas frágeis seguindo o destino das veias saltadas. você ressonava num assobio discreto e melódico, um passarinho abatido que resiste bravamente à extinção, enquanto arrancam suas penas uma a uma. você certamente decorava o ambiente. tinha os lábios descolados num arfar pueril - me curvei selando-os, e todos esses segredos foram apenas nossos.

Os seus fios finos tinham um reflexo quase doirado sob a mísera claridade que penetrava da janela aberta. o ar era mais denso e frio do que de costume, mesmo que a cidade andasse quente, seja pela minha ansiedade monstruosa ou pelo tal fim do mundo - já não importava. Eu padecia encharcada de suor nas maratonas mentais. E você tão singelo e tranquilo com as mechinhas caindo descuidadamente sobre o travesseiro alvo. Meus dedos famintos percorreram a textura delas uma, duas, dez vezes, desde o couro cabeludo morno até as pontas ressequidas. E ali, onde os fios nasciam virgens, eu me perdi na ideia da carapaça de osso que guardava o sangue que nutria esse fenômeno e no cérebro consistente e úmido que descansava assim. e nos trilhões de sinapses que aconteciam antes daquele instante, e bem antes, e quando tudo estava bem. e não parecia possível que porcarias tão irrisórias compusessem aquele ser que circundava minha carne flácida e me propunha uma rota de encontro única e exclusivamente a si. quis abrir ali sua doce cabecinha inconsciente, lamber vigorosamente a gelatina que aninhava teu pensar, e sussurrar pro sangue em trânsito: "você é meu". Assim, bem pausadamente. os dentes roçando o labio inferior, os lábios se arredondando, a pontinha da lin
Iingua contra as costas dos dentes da frente sibilando, como uma cobra pária, a vogal aberta, o labios se chocando nasalados e o lugar comum num ponto final suspenso. E eu sou sua. Não existe uma única célula que morra sem levar tua memória junto à cova da epiderme. Vou deixando um carinho desses cadáveres na tua bochecha pálida agora. Eu te amo.

No escuro, quando não me vejo e sinto as órbitas saltarem. Quando percebo o calor do choro invadir a fronte. Quando você parece estranhamente quieto. Quando segura da minha absurda paixão não me deixo ofender por você me pensar insana. Quando escalo o cajueiro e salto sua janela pra te provar de uma vez por todas que isso é só afeto. Quando você finge bicho acuado e tenta alertar quem quer que houver na casa. Quando no escuro eu tento te enlaçar no meu afago e acabo apertando seu pescoço forte demais. E enfim você relaxa e amolece, no meu colo. No meu colo. E nós deitamos lado a lado, eu contemplo sua expressão impassível e mais encantadora que nunca, e ficamos ali imóveis como os dois seres mais apaixonados da história do planeta.

Te dou meu sorriso largo no escuro.

E o escuro contemplou o que havia feito; e viu que era muito bom.

Postagens mais visitadas deste blog

caio,

whore

Armillaria ostoyae