volte para casa, amor
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Foi mais ou menos nessa época do ano, sob a prova cabal dos gastos expansivos com as luzes néon e hiperativas, que minhas mãos começaram a tremer e bramir independência; meus braços como cotocos inconsoláveis apenas podiam assistir aqueles membros alheios se alforriando. E os dedos se contorciam e estalavam e se esticavam em direção ao estranho mais próximo, inadvertidamente buscando tocá-lo - um afago nessa parte de trás do crânio, onde é macio e quente e quase esquecido, visto que os olhos sempre adiante se apressam em partir do corpo.
Aqueles frágeis esqueletos, regiões propícias à carícias abandonadas antes mesmo de sua ideia e posterior ação... Minhas palmas queimavam em hiperidrose, a pressão se abismava, eu tinha DE. Os segundos então se faziam guerras civis silenciosas e uma simulação empobrecida de esbarrão descuidado ou confusão com o perfil tão semelhante ao do fulano. Desculpa desculpa. A insônia companheira me sibilava possibilidades de eu ser uma abusadora em negação. E essa talvez fosse o supremo pavor.
Mas - aquela lenta agonia reincidente se dissipando enquanto eu conquistava o contato clandestino, a abstinência que precedia o vício, a atmosfera de crime e psicose, a paixão que me emanava das falanges débeis. A condenação vencendo o espaço. Pescoços delgados, iluminados de suor cotidiano - voltavam para casa os estudantes, os pais, acompanhados de alguma expectativa de noite em conjunção.
Certamente haveria quem os recebesse.
Certamente o outro hemisfério da cama ou o outro quarto estaria ocupado.
Certamente mais louça descansaria suja na pia.
Certamente o calor não seria uma caça a lhes tornar indignos.
Menos de uma volta completa da Terra ao redor do sol depois, eu tinha todo o contato que ansiava. Migrava meu tato de extremidade a outra, sorrindo pequeno à sensação terna de cócegas e arrepios com os pelos. À meia luz, sempre como minúsculos cristais espetados à força. Era sempre um luto abjeto quando o sal se esvaía, e a carne adquiria aquele aspecto de frescor. Uma cruel afronta ao naturalismo que me orientava o trânsito das veias: o sujo e a dor eram meu viço, meu ápice, minha majestade. E embora as emoções seguras me fossem imutáveis nômades, era sem o sujo e a dor que minhas faltas se agudavam.
Daqui de onde nos espichamos não há luz comercial que alcance; os únicos olhos têm de se acostumar à penumbra, como criaturas de eclipses. Mas é na treva suave que me dispendo à vontade o suficiente pra amenizar o elíptico da minha existência. Sonho mais que distingo. E da minha boca escancarada pende uma seiva que se batizo é apenas por adivinhação.
Nós assistíamos ao farfalhar melancólico das lâmpadas ao longe, ainda abraçados e cúmplices.
Depois que eu saí, queimei as receitas numa lata de lixo - mas ele não sabia disso, ninguém sabia. Esperei até o fogo alcançar um pouco a falta de controle inata e dei as costas triunfante; viravam cinzas e fuligem aquelas micro ordens em garranchos e carimbos, e por uns segundos eu tive mesmo a impressão de testemunhar meu próprio vulto nutrindo as flamas - talvez apenas um pouco maior e robusto...
Um ruído incolor me atiçara a atenção, e fui arrastada de volta pelo que parecia um ganido decrescente, de bicho que perde a voz ou a própria garganta, um guincho redundante de mutilados, dessas últimas peças de carne que rangem: procurava ainda no centro do fogo a boca-fonte, a silhueta larga, a chama consumindo os vestígios de socorro - e notei minha própria garganta assolada pelo grito, enquanto sob as garras incomodavam as lascas de vermelho.
E eu jurei não voltar às amarras improvisadas e bloquinhos de papel azul; aos copos descartáveis que a alvura destacava o sortido coquetel. Lembrei então dos chocolates com carapaças de açúcar que as outras crianças amavam e como já haviam sido os doces das trincheiras. Então virei o copo na boca matando o leve sorriso nostálgico e cinco minutos depois enterrava as cores úmidas de saliva no húmus do pátio, como sementes; quem sabe o horror que brotaria ali - se não fossem abortados ou natimortos todas as suas crias...
Mas ele começou a esfriar e enrijecer, e a iminência do abandono sempre me alcançava cedo demais.
Calor.
Era quando minha própria pele parecia gélida e artificial, e qualquer um poderia jurar que nada vivo residia sob ela. Toda sua superfície rachava, tal qual estilhaços de vidro que teimam em fingir equilíbrio e não desabam, não se espalham, não se assumem ao chão. Me relampejavam memórias que não sabia ao certo se inventadas ou muito bem escondidas, de um mesmo choro infante rasgado e comprido, um pequeno uivo sobrevivente num cômodo vazio de paredes cinzentas sem reboco, um colchão puído largado no canto, e todo o restante envolto em sombra e dúvida. Jamais vira retratada tão fiel a miséria e o abandono. E a mesma criança, de gênero impossível definir, nua e ferida nas costas por nunca ser erguida nos braços, dilacerada pela fome, a fome a fome a fome, tudo que ela poderia conhecer - naquele estágio de humano em potencial e feita apenas de necessidades básicas. os ralos cabelinhos finos em nós imundos irrecuperáveis, do nariz escorrendo secreção amarelada. o frio rachando a pele que decerto não fora protegida e amada nem mesmo quando em útero.
E nenhum abrigo jamais fora conhecido.
O pranto perdia volume, uma tosse fraca passava a se intercalar, logo apenas um grunhido de resistência, até que o frio imperava calando. o dano irreversível.
E os pequenos animais espetados e duros nos pés de uma menina pequena.
Mas não me interessavam os delírios nem os porquês.
Ele não era o único.
Voltava do expediente ansiosa pelas conduções lotadas, nas quais certamente uma garota com a nuca exposta me chamaria a atenção durante todo o percurso, até que o feitiço seria quebrado pelo sinal estridente de que chegara à parada de destino. Então ela desceria, talvez penteando o cabelo com os dedos ou procurando algo na bolsa, talvez estivesse com fones de ouvido ou com o celular em mãos ziguezagueando na tela, mas inegavelmente distraída e tranquila. E assim ela não perceberia minha eu estranha com agasalho escuro mesmo no verão nos trópicos, com tênis cuidadosamente escolhidos pelo solado silencioso - e eu choraria ainda mais que ela, quando os cartazes fossem colados nos postes e seus pais apareceressem abatidos e esperançosos no jornal local das 19h, porque sua filha jamais chegara em casa e resquício seu algum nunca fora encontrado.
Se você está por aí, volte pra casa, amor - eles diziam, entre soluços.
Não há casa para voltar, eu sussurrava. E no acústico do galpão vazio, mesmo os sussurros ecoavam.
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