ei, pai,

ei, pai,

ontem ouvi dizer que

a primeira palavra que

todas as crianças aprendem 

é seu nome.


hoje é aquele dia.

curiosamente, esse dia

caiu em vários daqueles.


minha mãe tem em cheque sua sobrevivência

hoje seria aniversário da minha avó

e eu devo sangrar em breve.


"eu devo sangrar em breve",

como se isso não fosse constância

ininterrupta derivada da seiva

com a qual você, descuidado, me moldou


como se eu não abrisse 

o-a-priori hermético da pele

implorando jorro e trigo

cumprindo o profano neuroquímico

fazendo jus, apregoada,

ao nome que você me daria, 

- pensou por dois minutos,

e acabou por deixar pra lá.


pessoas deixam compromissos pra lá

quando eles são irrelevantes.


então eu sou

sua paisagem plana, 

natureza natimorta,

pendurada na dispensa.

você nunca planejou

passar os dedos,

eu sou rasa

careço de fontes

dunas e apud


um retrato perdido na galeria

um espelho sem

imagem real


e tudo bem, porque você tem a ela

desse nome com dois eles

uma cópia de qualidade, nítida

altiva, raio de sol da família,


condescentemente construída,

e eu, um primogênito acidente

raio tempestuoso caindo em campo vasto


mas não é sua culpa.

você deu a ideia

de eliminar o mal pela raiz

como se eu não fosse uma trepadeira

cujas origens perpassam meu começo


logo meus lábios batiam

mamamamamamamama

e por decadência equânime

pareando nasal ao oclusivo

papapapapapapapa

todas as grandes gentes ao redor dizem "não"

todos os pequenos símios ao redor dizem o que eu disse

mas todo o seu enorme corpo confeitado

repete "talvez", reticente


você sempre me disse

"quem sabe

na próxima


a gente se encontra"


aos seis, "sou seu pai

você tem outro sobrenome, se escreve assim"

e o som do papel manuseado

da caneta amaciando

ainda é minha cantiga de ninar

"castelos em espanhol"

"o que é espanha? sou uma princesa?"

"com dois eles também"

"tia, como se pronuncia? 

disseram que era meu"

"três sobrenomes, que chique. você deve ter uma família grande"


ainda aos seis, "vou aí te ver no seu aniversário

o que você quer de aniversário?"

"quero que meu aniversário chegue.

quando é novembro?"

mas em novembro você estava ocupado.


aos sete, "sabe como é, filha...

mas a gente marca

de voce vir até aqui.

sabe,

eu te amo. beijo, até"


então amor é isso mesmo que eu estou vendo.


aos dez, "você tem uma irmã pequena"

e eu ouvi, por trás,

"ela não fala seu nome

ela não aprenderá seu nome

você será 'a outra' "


ei, pai,

quando cê vier

me busca na escola

na aula de educação física

quero que te vejam

eu imito seu /r/

quando perguntaram de você

não acreditaram em mim, então

eu levei uma foto

a única foto que tínhamos

você era o homem mais lindo do mundo

eu tive orgulho

decorei cada detalhe

e de tanto vagar por aí com ela

a perdi no trânsito e imagino

alguém a encontrando

e te encarando anônimo

sem levar a sério o que é tão preciso.


aos dezenove, te esperei na fronteira

as pessoas deslizavam pelo saguão do aeroporto

eu irrompia os corpos com olhar de falcão

- mas a presa fui eu


eu queria que você tivesse me ensinado

a falar, andar, pedalar e escrever

e a tocar em um homem me sentindo protegida

que tocar num homem pode significar estar-em-casa

que tocar num homem não inclui ser tocada

e até pouco tempo eu realmente achava

que você não tinha me ensinado nada.


agora eu reconheço sua presença

o estar-com que é também o alheio e a indiferença

e que a falta e a lacuna podem ser constitutivas

e se projetam em todas as direções


hoje eu reconheço que não precisava de fotos

ou quaisquer fisicalismos

para aprender algo sobre o que tínhamos.


o primeiro grande mandamento 

da minha existência


foi seu ódio


você me contou discursos sobre a cólera

ao pé da cama

todas as noites

a mais de três mil quilômetros de distância

e me convulsionou o corpo débil

no abc do medo


e antes que eu percebesse,

ou minha mãe ou a escola ou meus colegas,

eu já era graduada na sua herança


foi você e ninguém mais que esteve junto

cada vez que eu me arrisquei e arremessei carne à margem

e arrebentei todo limite seguro

rasgando só por estética joelhos e pulsos

no teatro dos abissais 

perseguindo feixes de luz astigmáticos;

quando reneguei o espírito e descri exponencialmente

e não aceitei os termos de responsabilidade


e me entreguei à fome dos homens porque talvez assim

eu também te alimentaria

e você me daria mais que talvezes

e menos que nãos


você me antecipou o que é não-poder

me apresentou à Morte

pai honrado me levando ao altar

segurando a ponta dos meus dedos como 

cristais delicadíssimos

- pai, sou uma princesa?


você se entreteu quando eu efetivei sua teoria

ferindo filhotes com isqueiros furtados

arrebentando as dentições de outras crianças na arquibancada

chutando canelas no ensino fundamental

socando mandíbulas de garotos desconhecidos

quebrando garrafas em balcões de bar

virando as mesas e apagando cigarros na pele de homens

descartando lâminas infectadas de carne cinza

esfregando com mais brutalidade que necessária

os afluentes coagulados que formavam crostas de sangue-café

diluindo os rastros no chão com acetona

destruindo conjuntos de copos de vidro na área de serviço

lambendo a delícia dos cacos, cortando a língua,

apaixonada pela imagem do intestino explícito

parindo o erótico do grotesco


como você, transformei casos sérios em piada

- mas só eu guardo embargo por trás do feito risível

e pranteio sozinha bebendo a cerveja que sei que você

também costumava beber

e ponho música no banho

e nunca abandono o all star

e encurvo as costas

descobrindo só depois, mediada,

que foi coisa sua também


que sou coisa sua também


vinte e quatro anos depois que você me descobriu

eu ainda ensaio movimentos 

imitando sua coreografia imagética

honrando seu legado

ao me odiar e a me arrepender

dos teus próprios erros.


ei, pai,

se isso te acalenta

eu também nunca me quis

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