anatomia de um ataque de pânico

Trancada. A chave por dentro.

Do outro lado da porta eu escuto cada fonema que me prova minha derrota. Fragmas dos vídeos que há pouco mais de meia hora exibiam outra de mim às gargalhadas e piadas estúpidas. No intuito de mascarar. De mentir o que já brotara desde cedo. 

Há alguém encostado na porta, uma voz que deveria acalentar, mas eu não sei. Não sei mais sobre amigos conhecidos estranhos ameaças. A música chega até aqui e eu odeio. Odeio não poder esticar as pernas. Odeio não inspirar o suficiente, o ar ricocheteando vago.

Quero ir embora, desabar em casa, mas não consigo passar pelas pessoas na sala, conversando, rindo, comemorando. Tampo os ouvidos com mais força do que deveria mas os sons ainda perfuram. 

Isso já me aconteceu? Acho que nunca aconteceu. Ou talvez não assim. Ou talvez todas as vezes que se manifesta seja tão diferente e colossal que pareça único ao extremo. Extremos. Não sei se é o que há lá fora, depois da porta frágil, ou aqui no abismo incalculável, depois da carne de vidro. 

Eu sei que há costas alheias pressionando a porta de madeira fina que tentam se comunicar comigo através dela mas o bloqueio é muito maior e pior que uma simples porta. Não é a alvenaria ou a distância palpável. É a inexpressão de qualquer palavra, meu corpo cedendo ao encolhimento desproporcional, até metamorfizar-se em um cruzamento infinito de retas deformadas, assim um único ponto, um ponto longo e ecoante, espiral de escuro, rasgando o véu do tridimensional, um vórtice coando o futuro, implodindo invisível.

As pessoas sabem? O que elas estão cogitando a partir do momento que eu saí da mesa impenetrável àquela comemoração eufórica e me resguardei no sofá, nos olhos demolidos no chão? Qual o olhar que me lançaram quando sumi de suas visões periféricas? No cômodo vazio, abafado, morno, minha respiração parecia sair fervendo e ocupar cada milímetro. Meu suor era uma erupção vadia arrombando cada poro e criando sua própria queda em gotículas, que logo secavam e abandonavam nas superfícies da epiderme aquele rastro de imundície grudenta. Enjoo ante aquela sensação. É a gota d'água para que eu jorre em choro, e secreção, e mais suor. Um choro tossido, ríspido, abafado, lancinante, me entortendo a coluna, sou um quasímodo periférico e subterrâneo. As minhas pernas órfãs de propósito espasmam à melodia nipônica que anima os outros a pouco menos de três paredes de mim. A porta está aberta mas estou só. Meus ombros se debatem no ar e minha retina parece trêmula demais, as cores que percebo não são as mesmas e estupram minha íris até expulsarem minha genética de tons confusos de verde. Tudo em mim é possuído só de baldio e umbra. Sei que é até possível que alguém no recinto tenha uma noção grossa do que me ocorre e tente romper meus cercos, mas é muito mais complicado do que receber de alguém o racional que me falha àquele momento; é hermético a ponto de que eu mesma não desejo isso, porque meu único instinto é fugir com força, com vontade, sem destino, me decompor em trilhões de partículas atômicas e existir fora dos domínios humanos. Caço essa invisibilidade e é aí que me tranco na varanda mínima, a chave para dentro. Agora não posso mais me mover contra isso, não há mais volta - e houve, algum maldito dia?

Encurralada. Não sei definir se pela situação, pelo ambiente, pelas pessoas cujos rostos são cada vez mais estranhos e desconhecidos quanto mais eu tento olhar, ou se por mim mesma. Por essa arquitetura quebrada e aberrante que reside na minha cabeça. Que não me permite estar entre os outros, fazendo com que eu nunca tenha os meus. Me torturando numa solitária entre as vísceras que me amarram os pulsos e os tornozelos, me amordaçam e rarefeitam o ar quando estou em público. Mas não sempre, porque seria fácil demais prever e administrar maneiras de evitar. 

Não quero enfrentar as caras e as pré ideias por trás delas assim que virem a minha. Não há maneira de sair daqui sem estampar meus escombros. O ar da cidade parece prover de uma turbina fervendo a ponto de me cozer. Eu frangalhos. Um pedaço de gente que nunca acha sua estrutura base.

Abro a porta e disparo para as escadas. Minhas botas estalam no chão milhares de passos como num labirinto de cinco minutos de extensão. A contagem para e não existe nenhum mero resquício dela. Não sei quando nasci, quando morro, mas não vivo. Eu apenas corro pelas escadas e espero por portas trancadas. Por dentro.

Atravesso a entrada e há mais um carro de um estranho pago para deixar em casa os meus restos da noite. Esse homem que nunca vi me lembra profundamente meu amor mais recente. O único? Durante anos era uma certeza que se assinalava a cada trajeto sinuoso do meu sangue. Agora, como uma maldição, me avulta. Eu soube seu nome aos 18 anos, quando meus olhos borraram na silhueta embriagada. Enquanto desfoco as luzes dos prédios depois do viaduto, entre viga parede viga parede viga parede e luzes que se avermelham, ele é meu amor de infância e me alcança até o exato segundo em que minhas sinapses desistirem de trovoar. 

Minhas mãos fogem de onde sou mais interina e carmim. O último espaço que o abduziu, seu último rastro que preservo como a pegada de Cristo antes de tomar os céus. Não comprometo as provas. Sinto falta da textura viscosa do seu DNA - que me acalentava. Tinha-o no acolchoado fino e macio do meu útero. brevemente. 

O carro para e o estranho muito parecido com minha saudade me fita pelo retrovisor; são olhos na sombra que poderiam muito bem ser os que um dia foram tão meus quanto os meus. Mas não há intimidade nenhuma neles; doze e noventa e quatro, ele declara, enquanto me obrigo a retornar aos meus músculos rijos. Eu não sei seu nome. Combinações nada criativas constam como o meu. Um arbitrário e convencional de porra nenhuma.

Guincho autoritária TENHA CALMA. RESPIRE. Mas não paro de contar os segundos sem saber quantos já se foram. Os números são entidades vazias que possuem o poder de apenas sumirem. Eu não posso voltar à mesa decorada e flutuar um sorriso cimentado entre os balões pretos e laranjas. Eu não posso aparecer assim, tão igual ao estado mais deprimente e constrangido de um organismo. RESPIRE. Isso ja aconteceu antes. Isso já te devorou antes. RESPIRE. E você foi regurgitada indigesta e queimada em ácido, mas ainda viva. Isso já aconteceu antes. Você não vai morrer de pavor. Por mais violento. Por mais ditador. Por mais déspota. É só pavor. Você o nina entre as artérias enlinhadas, sublinhadas, ele é seu bebê de fel - você não é sua cria de estimação. Você não vai morrer de pavor. É só mais uma vez, ainda que seja a décima na semana. Você já passou por isso. Isso tudo. É só você. 

Abra a porta.
O pânico não está do outro lado. O pânico não está em lugar nenhum, exceto trancado.
A chave perdida.
Bem dentro.

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