Eu vou ficar bem

Você demonstra se preocupar comigo e insiste que preciso conhecer novas pessoas. Antes mesmo de te ouvir terminar a frase, meu coração dispara encurralado e prevejo alguma intenção sórdida por trás dessa suposta preocupação. Você me acha dependente emocional e não quer que eu construa esse tipo de elo contigo; você forja se importar com minha inabilidade social para enfim poder se livrar da minha companhia pesada e meus assuntos melancólicos. Outra vez eu sou esse pólo negativo que repele as pessoas, um fardo imenso até para aqueles que juraram não se assustar - como você, no início.

As pessoas costumam me garantir que é um problema a ser lidado e que não sairão correndo quando minha voz sumir e meus olhos tentarem mergulhar no globo. E então elas me descobrem e passam a dar desculpas e se esquivar ate mesmo das minhas investidas nos dias mais tranquilos. A verdade é que padronizaram até mesmo como minha ansiedade deve se apresentar, e por mais que eu tenha me esforçado em alertar, como quem implora perdão antes de pecar, parece que extrapolo os limites do pânico que seria aceito. Você até acataria se fosse simples como eu evitar frequentar festivais lotados de estranhos ou me mostrar intensamente nervosa perante falar em público ou tentar uma entrevista num novo emprego. Mas nunca se trata só disso. Os festivais lotados de estranhos eu deixei para trás antes mesmo de entender porquê, e sobre falar em público ou tentar uma outra entrevista eu nem mesmo cogito, porque sei profundamente que não sou capaz. Talvez você perceba que minha ansiedade é uma sombra constante e crônica em absolutamente todo movimento que ouso fazer, e que por isso se estende desde a me alimentar até ir numa farmácia a dois quarteirões de casa. Talvez você perceba, mas faz vista grossa, porque isso é sempre muito mais do que qualquer pessoa pode lidar.

Repetindo sucessiva e descontroladamente, eu vou ficar bem eu vou ficar bem.

Você diz que preciso me enturmar e eu respondo que não vejo como construir relações nesse estado. Então você jura que basta que eu seja eu mesma, mas quando sigo seu conselho eu sempre provoco aquele silêncio desconfortável na mesa até entender que é hora de ir embora e deixar os normais entre os seus. Então você passa a me podar ensinando como posso ser mais prudente e atraente em uma possibilidade de contato, e eu percebo que precisaria fingir uma estabilidade que não me é natural. Aos poucos internalizo que a saída é me afastar de você também, outro alguém que eu muito amei, mas que consegui estragar tudo novamente. Eu me isolo e me convenço que a melhor atitude é não submeter as pessoas a mim, e então excluo as redes sociais porque não tenho os conteúdos esperados para mostrar - como fotos na praia ou sorrisos largos entre uma cerveja e outra. Primeiro porque eu não saio há meses, e segundo porque eu nunca colocaria um biquíni expondo esse corpo que é minha eterna trincheira de guerra, repleto de ódio e cicatrizes de dezenas de quilos a mais e machucados auto infligidos. Eu passo a recusar convites e inventar desculpas até mesmo pra não dar um mísero "bom dia", porque não me arrisco a ver na sua e na minha expressão a estampa de fracasso e ausência. Eu falto às aulas e aos compromissos e qualquer expectativa ou sonho futuro se distancia até se eliminar completamente. E eu fico reelaborando planos reservas de como sobreviver quando a geladeira esvaziar, os anos chegarem e eu não tiver mais ninguém que faça o favor de me manter consciente. A cada cartela de medicamento que eu estalo para engolir me vem uma obsessão para cometer o famigerado suicídio por overdose. Aí eu guardo a cartela de novo no fundo da gaveta, guardando também essa saída pra um dia pior, porque sei que ele virá, e logo. Me jogo na cama e me enfio entre algumas leituras e vídeos medíocres enquanto observo os tons e as luzes mudarem lá fora e a noite me alcançar. E quando isso acontece o vazio se aguda e pressinto a urgência pra dormir. Espero o calmante fazer seu efeito e durmo antes que todos em casa e na rua, tentando fugir do desespero que me abate quando as lembranças começam a avançar, selvagens e carnívoras, umas sobre as outras. No outro dia eu acordo sabendo que tudo será exatamente igual e me pergunto o que diabos eu ainda estou fazendo aqui, e porquê insisto em comer, e tomar banho, e me arrancar da cama. 

Eu vou ficar bem eu vou ficar bem eu vou ficar bem eu vou ficar bem eu vou ficar bem eu vou ficar bem eu vou ficar bem eu vou ficar bem eu

Você pode até achar que estou tentando, mas a verdade é que estou apenas vivendo no automático.

Você diz que preciso conhecer pessoas, mas não sei como fazer isso entre um ataque de pânico e outro, quando me resigno na cama por dias sem literalmente conseguir levantar. Porque levantar da cama e cumprir atividades medíocres e essenciais não parece em nada ter qualquer carga de impossibilidade. Mas pra mim é. Eu fico entre as roupas sujas confundidas com as limpas largadas no chão, restos de comida que não consigo engolir, correndo pro banheiro em ânsia de vômito, chorando compulsivamente pelo fato de chorar. Morrendo a cada minuto que não sei a origem desse mal estar terrível que me assola há anos que torna minha vida uma tortura a que eu tenho de me submeter apenas por convenção de chegar à velhice e morrer de vez de um infarto ou um AVC. Eu apenas espero. Vendo os dias passarem pelas frestas da janela.

Eu vou ficar bem eu vou ficar bem eu vou ficar bem

E quando me olho no espelho não me reconheço. Minha cara parece mais envelhecida e abatida, porque realmente o tempo passou e eu continuo estagnada, eliminada por dentro, murchando devagar. O tempo passou e eu continuo sem entender e sem descobrir como melhorar.

E então eu me afasto das pessoas que ainda tenho porque vez ou outra exponho essa fragilidade trágica que choca a qualquer um. Choca ainda a mim mesma. E eu não posso obrigar que alguém entenda minha situação porque é atípica e sem solução, ninguém é preparado pra isso, lá fora algo assim simplesmente nao existe. Eu não existo. E aos poucos eu me faço ainda mais não existir. 

Porque eu não quero preocupar as pessoas, e pra isso preciso que elas não se importem comigo, porque hora ou outra eu decaio sobre mim mesma, sem controle ou poder algum. Eu não posso me responsabilizar por mim e isso me enlouquece, não tenho como prever minha espiral de pensamentos obsessivos e melancólicos daqui a cinco minutos, não tenho como combatê-los, não tenho a quem pedir ajuda. Eu fico aqui entre os remédios e as lembranças como adagas. Não tenho como chegar até os outros tendo toda essa carga, sendo toda essa desgraça, sabendo que logo eu vou decepcionar e perder novamente, colecionando abandonos e memórias de quando ousei enfrentar meu medo e fui vencida outra vez. São muitas derrotas iminentes pra guardar, mofando entre elas.

Eu vou ficar bem

Quando acontece de me abrir, meu medo contamina o outro e impera. Eu não quero que meu sofrimento se estenda. E é só essa parte de mim que consigo acessar, porque todo o resto que eu já fui parece enterrado a sete carnes. 

Você diz que preciso conhecer pessoas e eu não sei conhecer a mim mesma a tempo de evitar outro acidente. Eu não sei ser mais que um erro. Eu não sei dizer mais que "me perdoe".
E não importa que pessoas eu conheça - nenhuma delas vai fazer isso parar.

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