senhoras
Esse nome sussurrava a si mesmo, independente em sua fantasmagoria. Já eram seis, sete anos? Me chegava, com o talento de não se deixar misturar aos ruídos comuns. Como os últimos arfares de uma outra eu, arruinada e tosca, dos mesmos dedos curtos pra fora do parapeito. Já vai?, a dona do nome sussurra, e sei que ela quer dizer que eu já deveria ter ido, ou provavelmente nunca deveria ter surgido. Nome-inimigo, sua dona me odeia como manda o manual, e os nossos não se encontram na mesma frase senão em tom massacrante; pelo meu nome, do dela foi decepado aquele que hoje me governa - enfiado no corpo da palavra familiar como um príncipe Frankenstein, com todo o direito de ditar. Eu sou chamada de outra forma hoje. Mais um epíteto que um vocativo. Mas só o sou porque ela já não é; em retrospectiva, tínhamos o mesmo título.
As senhoras dele.
Soube carne a carne de ti apenas meses depois; que já não andavam bem há tempos e você não o suportava mais e haviam acordado apenas o mesmo espaço. Até então você era essa megera sem rosto. Mas, uma tarde - algo havia acontecido ou você me queria ver com os próprios olhos esbugalhados e insones - eu saía com ele do elevador quando uma mulher cujos traços não eram outros senão tomados pela exaustão, com seus longos e ressecados cabelos num coque caído e, deus meu, olheiras por toda parte - sustentava apertado uma criança pequena, como se dela dependesse e não o contrário, e diretamente nos fitava com uma expressão singular que só depois descobri ser a de humilhação. Não houve escândalo e na verdade nenhuma palavra foi trocada; nos resignamos no cotidiano perverso que é a traição - mas na época eu não sabia disso. Entre nós havia quase onze anos de diferença e um homem que nos igualava em objetos de desejo frívolo e efêmero. Então éramos apenas supostas competidoras, estupidificadas na rivalidade, sendo injustas consigo mesmas, e portanto, uma com a outra.
Lembro de interpretar que a presença do bebê tinha o apelo de nos induzir à culpa, e a julguei por usar daquela forma a filha. Meu egoísmo de então era incapaz de cogitar que não havia com quem deixá-la, mas que de qualquer forma, era filha do Sr. Bastos, e ele tinha obrigação de contemplar o abandono e a miséria que deliberadamente impunha sobre os dois, ambos inocentes e incapazes. Julguei que ela fosse pouco bonita e descuidada, e não uma mulher à beira do colapso, encarando os responsáveis por isso - e tomando como seu fracasso. E aquele bebê, de algum modo pouco decodificável, sofreria disso mais tarde e guardaria de mim uma imagem demonizada de teor ferido e vingativo, em parte porque existia nisso uma rústica verdade, outra parte porque sua sobrevivência dependia disso. Mas na época ela era apenas uma criança pouco parecida com o pai - que me comia no carro da família e em motéis caros, surrupiando o dinheiro do aluguel e dos cuidados da filha. Admito que despontou por um milésimo uma certa sensação primitivamente baixa de superioridade, de sair vencedora daquele confronto imaginário por um homem que, de toda maneira, era apenas mais um homem qualquer.
Abruptamente ele largou minha cintura, como picado por um bicho peçonhento, e eu via seu desconcerto, tão contrastante com a expressão vazia e comedida da Sra Bastos. Ele caminhou até eles esquecendo minha presença, e estendeu os braços para o bebê - apenas para manter as aparências, todos sabiam. Eu sentia os olhares pouco discretos de alguns colegas do escritório, que sempre com desconforto e risadinhas secas reagiam a nós dois.
De muito que resta descrever, me convenço de que não interessa realmente ao desenlace desse primeiro contato, que guardava encontros anteriores muito mais sutis.
As bolsas sob os olhos dela afundavam e meu batom ficava menos discreto. É mesmo curioso esse status de amante que o mito da puta instaura sobre as mulheres desavisadas.
Era início de dezembro e chovia fora de época. Não muito além disso recordo, o choque deturpa a experiência. Nós dormíamos no meu minúsculo apartamento de solteira e o celular dele tocava insistentemente. Pude ver o nome da Sra Bastos nas duas ou três primeiras ligações. Algumas horas de intervalo e o celular volta a tocar, cada vez mais estridente enquanto adentra ousadamente à noite. Ele murmura, mau humorado, tenta deslizar a tela para recusar a ligação mas, grogue de sono, acaba derrubando no chão o aparelho. Como não parava com o som irritante, ele se ergue bufando e atende. Eram cinco da manhã. A voz no outro lado da linha era um ruído estático longínquo, até que um baque surdo me desperta de vez. Sr Bastos deixara escorregar o celular.
A bairros de distância, um outro baque surdo rompia a noite, descoberto apenas naquele instante. E quando o sol alcançou minha janela, Bastos já não estava lá.
Pelejei para reconstruir os fatos, juntar as peças espatifadas, possuir como uma entidade o corpo da ex Sra Bastos e morar atrás dos seus olhos e arder sob sua pele o que acontecia nas horas entre as ligações e o impulso. E descobrir as espirais nevoentas que a induziram a isso antes, muito antes daquele final, e mais que isso - como pudera levar junto de si a menina pequena. Ela sabia que a morte não era um reencontro ou um conforto. Eu não entendia ainda, mas ao fazê-lo ela declarava, como extenso texto dramático que é todo suicídio, que estava muito mais triste e cansada do que se podia imaginar, e que sua lógica falhava no seio da depressão, quando não confiava em nenhuma instituição ou pessoa para garantir o bem estar da pequena. Toda a esperança, e com ela toda a disposição para os afazeres subsistenciais, tinham deixado-na. E o que havia era uma casca oca ressequida, incapaz de lamentar porque os futuros já estavam delineados, incapaz de intervir porque as perdas eram irrecuperáveis. E para ela, era provável que a filha tivesse uma vida miserável de qualquer forma; ela não a abandonaria.
Soube depois, a partir de minha metamorfose, que amar o sr Bastos compreendia abdicar de si mesma - pois todo o tempo e energia eram direcionados a mantê-lo interessado e presente, embora o fracasso fosse inevitável e iminente. E a aura estressada e enlutada se esgueirava pelas arestas, sem nunca conceder um descanso. Lívia, como era chamada quando pessoa completa e não extensão enferrujada de Bastos, já havia partido há 3 anos e nós morávamos juntos desde então - no mesmo apartamento. Eu assumira o posto inicial de Lívia - ignorando que Bastos respondia a ciclos, e que eu e Lívia, e qualquer outra mulher, éramos engrenagens pouco importantes na unicidade. Eu queria casar e ter filhos - ele se dizia ressentido e temeroso pelo que acontecera, e me restava respeitar. Aos poucos o rancor que eu possuía por Lívia por ela partir de forma tão tragicamente proposital e descer sobre nós aquele manto de tensão como um mau agouro crônico foi se dissipando, e eu vez ou outra mexia nos poucos objetos que dela sobraram, uma ou outra joia, um pequeno caderno de escritos aleatórios, e fotos. E a estudava naquelas imagens de uma Lívia diferente, não apenas viva como saudável, cintilante, corada. No casamento ela mais parecia uma entidade da natureza, com o longo vestido madrepérola de rendas simples. A lateral do cabelo estava trançada e se encontrava numa mecha na parte de atrás, e seu sorriso era quente e muito mais profundo do que o rosto podia mostrar. As fotos eram muitas nos primeiros anos. A maioria das que se sucediam eram de Bastos sozinho, entre amigos e em eventos. Quando Lívia novamente aparecia, parecia muito mais velha; cortara o cabelo e tinha pendentes os cantos da boca mesmo quando forçava o sorriso. Os olhos eram desfocados. As fotografias de sua gravidez eram o total oposto das que se esperava ver de mães de primeira viagem. Me pergunto se ela queria mesmo o filho, ou se se deixou levar pela escolha emocional de ter algo pelo que lutar e depositar seu amor. Algo que a salvasse. A criança nascera abaixo do peso e eu podia imaginar quão turbulenta fora a gravidez. E depois a decepção de perceber que nada seria diferente para a filha, e que aquela realidade que a hostilizava faria o mesmo com a menina. Talvez Lívia fugisse da pretensa determinação que envolve ser mulher: ensinadas a pertencer e servir um homem, encontrando nele também a sua ruína - e no meio desse processo feito de reflexos e ecos, eram muitos os que ousavam dizer que nós possuíamos integral poder de escolha.
Era verdade que em teoria podíamos nos revoltar e marchar para longe. Mas não longe o bastante, porque não existe lugar em vida, em que uma mulher possa descansar da obrigação de pertencer. Mas na prática... encerradas nos próprios obstáculos e tendo de erguer falos para conquistar o direito à vida, rebelar-se exige muito mais força e segurança do que as que nos são possíveis nesse cotidiano. então o que resta é a percepção drástica que introduz a fúria, ou então a doença, quando não há nada mais que raiva, e ela esmorece em tons frios, se tornando uma espécie de mágoa vertebrada. O que existe não é mais uma identidade, mas um produto perambulante da escassez das chances que nos juraram ser possíveis.
Não acho que, no estado que se encontrava, Lívia tivesse outras opções. É claro que por questões de moralidade e ética nós defendemos sempre que existem outras saídas e que nenhum motivo é suficiente para matar a si. Conjecturo se a morte não foi para Lívia a primeira escolha que ela fez contrariando o mesmo conjunto de regras que a mortificava, e que sem dúvida garantiria que ela podia viver apesar disso, bastava se tratar e continuar, mas eu tento afundar meu peito no seu e adivinhar que - não, ela não acreditava que quaisquer terapia ou medicação pudessem dar um jeito naqueles talhos mentais tão infeccionados, talvez no início, mas não agora. É preciso muita coragem e energia para se dedicar ao processo terapêutico e agora parecia tarde demais, há muito tempo parecia tarde demais. De alguma forma sempre restaria aqueles focos de ferida abrindo e sujando sobre as coisas, e aquela menina? Ela já sentiria opressões incapaz de verbalizar e já deveria estar marcada em algum nível pela ausência paterna e o sofrimento da mãe. Aquela menina cresceria, não importassem os esforços de Lívia, com lacunas intratáveis, e mais tarde surgiria um sr Bastos de seu tempo para destruí-la à imagem e semelhança de sua mãe. Aquela criança era tudo de incólume e terno que ela já conhecera e ela não poderia deixá-la para trás, sabendo que por todos os anos seu fantasma a atormentaria. E ela jamais jamais saberia dos motivos todos, e Bastos não cuidaria da menina. Lhe fora roubado o direito à família.
Eu já não me sentia só em mim. Lívia parecia, a cada dia, se revelar mais - e me consumia que ela tenha morrido me odiando. Sua morte e a morte da criança pareciam minha punição. E era bizarro que nem eu nem Bastos sofrêssemos com isso - como se Lívia tivesse apenas desaparecido ou nunca existido realmente, ao invés de saltado do terraço de um prédio no centro abraçada com a menina. Pensava se a criança dormia, ou se seu choro havia cortado o ar da noite como um último uivo. Pensava se havia sido imediato. Não era capaz de dormir uma noite inteira e logo estava terrivelmente insone. Bastos não dormia com frequência em casa há alguns meses, e eu tinha algumas ideias de onde poderia estar. A culpa pela morte de Lívia era maior do que a mágoa da traição. Porque o castigo parecia justo.
Saía do banho em mais uma madrugada em claro quando a percebi diante de mim. Ela tinha a mesma face do dia do nosso único encontro. Abatida e pálida, de um olhar duro resignado. Seu cabelo comprido estava molhado e escorria pelos ombros. Ela não desviava o olhar e, conforme eu me dava conta do absurdo da situação, se tornava mais apavorado. Lívia escancarou a boca e parecia que um buraco negro lhe tomara a metade inferior do rosto. Foi apenas quando notei o guincho que me escapava da garganta que compreendi que se tratava de um espelho.
Não conversávamos, eu e Bastos. Mas quando talvez uma de suas amantes não o satisfazia, ele me procurava carnívoro. E foi com luto que recebi a notícia da gravidez.
Eu nutria no ventre o vetor de uma tragédia. Duas vidas foram tiradas para que aquela existisse. Bastos não queria filhos e eu não contei da descoberta. Até então era apenas um aglomerado difuso de células, não?
Como todo luto, estive um pouco em negação - tempo suficiente para o primeiro trimestre. Os dias eram embaçados e pareciam pouco reais, de modo que minha noção de tempo andava prejudicada. Eu tinha enjoos terríveis e dormia a maior parte do tempo.
Era uma menina. Uma outra maldita mulher, era o que constava no ultrassom. Qual o nome?, a ginecologista perguntou sorrindo, julgando talvez que meu silêncio seco fosse apenas emoção, quando na verdade sabia que aquele coração apressado da máquina era a de mais uma condenada. Lívia, eu murmurei. Linda escolha, foi o que ela disse.
Então agora eu me sinto mais próxima do que nunca. Como se eu pudesse ler sua mente antes que ela mesma tivesse acesso. Eu calçava seus passos e morria sua dor. E foi calçando seus passos que eu encontrei seu último não-lugar. Talvez fosse assim que se parecesse a redenção. Finalmente conseguia encaixar os fatos nas lacunas daquela noite - levava exatamente os mesmos lentos minutos para arrastar os calcanhares pelo terraço e os mesmos segundos vertiginosos na náusea de olhar para baixo. O ar era gelado, muito gelado, e as pontas de nossos narizes e dedos absorviam aquela friagem. Nosso cabelo como um redemoinho. O diabo observando de cima. As crianças infelizes aninhadas nos nossos ventres. As mãos vazias e os olhos no além insignificante. Prendemos a respiração juntas - e, outra vez, nos lançamos forte contra o céu.