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Mostrando postagens de outubro, 2021

gut-wrecking

hoje te fiz prometer que você não me veria . que você lembraria de mim como agora, embora meus olhos estejam inchados e minha pele áspera de lesoes. mas meu medo é que você não acreditasse até que visse com propriedade para ter certeza absoluta do que é o Fim. ainda que notificada, em mãos o atestado, declarada morte encefálica; que você não resistisse ao ímpeto de trucidar seus olhos na matéria dessa vez primeira irremediavelmente pétrea, nudez disposta sobre o berço de metal. que você exigisse que me despissem, lentamente, a face do plástico negro -- como uma noiva que jamais alcançou o altar.  que percebesse enfim que aquilo que fui eu estaria ali, mas sem mim. não mais apenas os olhos, mas um todo horizontalmente inchado e de uma alvura que apenas a carência de vitalidade é capaz de prover.  que suas pequenas mãos pruriginosas e descamadas não contivessem o tato, uma última carícia à carne crescida do teu ventre. aquele aborto adiado, voluntário eras após à neurulação....

antes que eu conheça essa noite

tarde demais para ainda ser noite, saltei a janela pela primeira vez em 10 anos. meus músculos desaprenderam essa mecânica do socorro  ignorei a vertigem verde e sentei no escuro, assentei o terror na banalidade. o terror que anda junto como um cão negro. como um cérbero famélico e leal em suas três cabeças. no breu absoluto onipresente, onde deus não enxerga suas palmas, esqueci que o temia. nele, onde tudo que é luz não passa de sua ausência. pensei ter ouvido sussurros dos demônios por detrás das vigas. pensei ter ouvido você cantar uma melodia de criança da lua, como um rei carmesim.  — isso acontece o tempo todo  pensei ter ouvido você chorar, mas você não chora. sob o assoalho úmido de um poço, percebi que passaram as décadas sabáticas. percebi também que não me resta a segurança que é temer demônios alvos como todo mundo, demônios que me tateiam no sono e sentam sob meu peito chamuscado.  e o odor de incinerada carne só mais um detalhe. saudosa de palpitar sob...

[esse corpo]

esse corpo: de pronome demonstrativo do alheio — ativo no nojo. esse corpo, que não quero à noite, à mostra, às vistas públicas vandalizado circunscrito ao vilipêndio coisa pública sem lei, terreno inóspito cuja vida não se cria corruptela aos ciclos de crescimento organismo falido em declínio cavalgante escravo espelhado do impulso pré-reflexivo e expulso das causas naturais esse corpo causa mortis tardia nu em pureza tenha talvez primeiro sido ou já tenha sido embrião fincado de espinhas esse corpo parido como eu nunca foi meu. esse corpo partido esse corpo exilado esse corpo expatriado foi feudo da escassez e logo do diagnóstico, prensado em consultórios,  termos técnicos e procedimentos de correção e higiene desde sempre um caso errado a ser otimizado em esteira fordista do que é produzido ao que seria aceitável esse corpo cedo foi de homens e suas algemas emocionais,  quando uma coleira me foi encarnada à garganta e a boca  se cansou da palavra e até do grito po...

...como trama da comunicação

  de interdiscursos e dialogismo constitutivo, como mais de dois espaços ao mesmo tempo espessos enunciados que não se encerram  quando materialmente  terminados. a mão que pontua é a mesma  que me circunflexa a garganta da proclamada intenção de findar toda a existência consciente ainda desperto. e eis que levanto, feito bicho atropelado na rodovia. descalça, ensaio a marcha fúnebre até o reflexo e cravo as unhas na pele canela, lavo o rosto feito inteiro de desgosto, engulo aos montes alguns pães (deveria me alimentar melhor) bocejo enquanto a omoplata esquerda lateja (deveria alinhar a espinha) acesso de tosse e arranham espinhos (deveria largar a nicotina) lavo a tal orquídea única violada e sem música, até inchá-la (deveria metê-la em soda cáustica) do subsolo, assisto o progresso dos homens de mérito em seu cotidiano tipificado ignorantes de seus privilégios de nascerem já passos à frente do subsolo, assisto o jogo natural dos quadris das mulheres que possuem ...

pena capital

é que você não me deixa escolha eu queria terminar esse livro mas leio lento porque a cada verso, me surge uma estrofe como se cada um me inoculasse seus filhos bastardos fios em rede — se me embalo ou me enforco apenas tardo. mas você não me deixa escolha cada manhã mais uma e uma outra trouxa de interdições os acasos surgindo como filhotes de aranha eclodindo dos menores ovos como colchetes dentro de parênteses parênteses atrapalhando parágrafos trechos em obra, e eu que deveria dar a volta encontro o retorno proibido teço uma narrativa suspensa órfã de tema ou título os travessões em malabarismos em busca de qualquer "portanto" definido sabe, eu queria montar numa bicicleta à noite e visitar as ruas pavimentadas e seguras de asfalto retocado que não tenho dinheiro para habitar sabendo que existe um endereço certo sentar na areia com shorts curtos que exibam, sim, as manchas atópicas e minhas largas e brutas formas de um corpo cria de grande porte do abuso que ladra tanto q...