antes que eu conheça essa noite
tarde demais para ainda ser noite,
saltei a janela pela primeira vez em 10 anos.
meus músculos desaprenderam essa mecânica do socorro
ignorei a vertigem verde e sentei no escuro, assentei o terror na banalidade.
o terror que anda junto como um cão negro. como um cérbero famélico e leal em suas três cabeças.
no breu absoluto onipresente, onde deus não enxerga suas palmas, esqueci que o temia.
nele, onde tudo que é luz não passa de sua ausência.
pensei ter ouvido sussurros dos demônios por detrás das vigas. pensei ter ouvido você cantar uma melodia de criança da lua, como um rei carmesim.
— isso acontece o tempo todo
pensei ter ouvido você chorar, mas você não chora.
sob o assoalho úmido de um poço, percebi que passaram as décadas sabáticas. percebi também que não me resta a segurança que é temer demônios alvos como todo mundo, demônios que me tateiam no sono e sentam sob meu peito chamuscado.
e o odor de incinerada carne só mais um detalhe.
saudosa de palpitar sob ameaça do sobrenatural. completei meu pacto com o ceticismo.
não existe entidade que me faça tremer mais que o concreto dessa vida.
não existem sextos e décimos sentidos que me valham de alerta vis a vis com os sorrisos bizarros do escuro grosso
tenho reaprendido a morar
tenho reaprendido a morrer disfarçadamente, maquiando o cadáver e me espojando no perfume, fingindo o autônomo das vísceras
tenho reaprendido a ocupar os cantinhos austeros do temporal esparso alheio
reaprendido que os vértices dos desafetos são aquilo que me cabem os restos.
reaprendido que meus relatos não reparam, que a lei não imputa o crime, e que
no breu ainda há flashes de fogo-fátuo ciano, os vapores a que fui reduzida naquele quarto
que o sangue não cabe na palavra
que o sangue não adentra a palavra
que o sangue não conhece conceito
e tenho visto que as lástimas antiquíssimas eram na verdade meu ápice.
intestina aos males o maior, tenho me visto em retrospecto aos prantos e concluído que amaria, amaria chorar por isso e aquilo outra vez.
me deixe chorar outra vez apenas pelos corações partidos, pela barbaridade do hábito, pelo tédio vital
me deixe chorar pelo ódio ao corpo antes que este fosse odiado por outros
me deixe chorar pela ofensa, pelo abandono, e pensar de novo que a vida já me foi o máximo injusta
antes que eu conheça essa noite
antes que eu conheça essa noite
me devolva o corpo maculado por mim mesma. me devolva a época que eu podia cortar os pulsos porque não era obrigada a não existir em pulsos para que o salário caia na conta dia 5.
me devolva o corpo que eu podia brutalizar publicamente e não sob as calças sociais de tecido fino.
antes que eu busque as farmácias clandestinas, os dois mil dólares por nembutal, os fóruns sobre heurística da suspensão parcial perfeita. antes que eu aprenda que o nó de forca não é o ideal. antes que eu não me torne rigorosa ao encomendar canivetes. antes que o chicote do fetiche sexual se torne um instrumento de punição. antes que eu não vá mais à praia, antes que eu não vague mais pelos bares aos fins de semana, antes que eu não me veja mais bonita, antes que eu não me encolha porque sei que alguém como você jamais olharia pra mim, antes que eu nem tente mais cruzar os olhares no ônibus, antes que eu não tenha mais tempo de ser menina, antes que eu não tenha mais corpo pra ser mulher, antes que minha voz se agrave com os cigarros, antes que eu complete os 25 anos de latino-americana. antes que meu rosto não estranhe o sorriso. antes que o caixão seja lacrado, antes que me cubram com mantos de terra, antes que perca o teor de romantismo literário. antes que eu desaprenda a escrever. antes que eu me cale mutilada e minhas janelas deem de novo para um vão e uma parede. antes que não me orem mais porque já faz muito, muito tempo que eu me fui, antes que eu seja uma história gasta nas línguas, que meus traços embacem na memória.
antes que eu conheça a primeira noite de outubro
e salte pela janela
fazendo as pazes com o breu