gut-wrecking

hoje te fiz prometer que você não me veria. que você lembraria de mim como agora, embora meus olhos estejam inchados e minha pele áspera de lesoes.

mas meu medo é que você não acreditasse até que visse com propriedade para ter certeza absoluta do que é o Fim.

ainda que notificada, em mãos o atestado, declarada morte encefálica; que você não resistisse ao ímpeto de trucidar seus olhos na matéria dessa vez primeira irremediavelmente pétrea, nudez disposta sobre o berço de metal.

que você exigisse que me despissem, lentamente, a face do plástico negro -- como uma noiva que jamais alcançou o altar. 

que percebesse enfim que aquilo que fui eu estaria ali, mas sem mim. não mais apenas os olhos, mas um todo horizontalmente inchado e de uma alvura que apenas a carência de vitalidade é capaz de prover. 

que suas pequenas mãos pruriginosas e descamadas não contivessem o tato, uma última carícia à carne crescida do teu ventre. aquele aborto adiado, voluntário eras após à neurulação. 

eu sei, como profetizasse, que te socaria a certeza de que um corpo é só um corpo, e isso esmagaria suas concepções sobre vida e morte. você procuraria naquele pacote duro os indícios de uma Gabriela a quem você decorou cada milímetro epitelial. você investigaria o abstrato, o espectro que escapa à cena daquilo que me fazia sua cria. e eu, bem depois de ser eu, ainda assim seria capaz de te atravessar como um punhal. até mesmo aí eu performaria sua desgraça. onde você foi parar, você pensaria.  

eu fragilizaria sua fé, sua relação com deus, e você voltaria ao genesis sobre paraíso e inferno. padecer no paraíso. é o que ousam dizer.

escuto agora mesmo, agora que ainda posso ouvir, aquele som característico que somente eu já testemunhei; um guincho animalesco do supremo terror, o teu choro mais medular, que desponta do mais profundo assoalho dos órgãos. quando o humano se depara com o Nada. e não importaria há quantas horas ou dias o invólucro do que deixei de ser ali estivesse inexpressivo, você hidrataria meus tecidos precocemente desfiados com suas lágrimas. buscando ali na tal Coisa que reclama o anonimato um cheiro qualquer familiar, e não haveria um só indício do meu suor, dos meus cigarros, do meu perfume em liquidação que você me presenteou e eu poupei até a última gota. cheiro bom de filha, você sempre dizia.

você lamberia sua cria ansiosa pelo ruído que me escapou pela biologia impiedosa, enquanto as bactérias, o tempo e o clima cumpririam seu ofício. 

lotando de beijos úmidos minha face que já não absorveria seu imenso imenso amor. suas lágrimas rolariam excessivamente rápidas meu rosto. você pensaria que eu também choro, mas eu já não choro. eu já não rasgaria a garganta com meus berros. você seria obrigada a admitir que sim, era sua menina. e você obrigaria a eles que lhe dissessem os detalhes.

largada ali no frio, mas eu já não sinto doer. largada ali sozinha, mas eu já não tenho meios para temer. 

e pelo que sobraria dos seus anos, com sorte não muitos, restaria a você lembranças e milhares de hipóteses sobre o que sobrou dos meus minutos, com azar não muitos. pelo que sobraria do seu tempo você o teria cronometrado e encarcerado nos meus últimos minutos. sincronizadas, você escavaria minhas derradeiras conclusões, meus motivos, minha despedida não cumprida. minhas palavras elípticas, adivinharia o vento que me gelava a face na cobertura de um prédio avulso. você viveria meus últimos minutos. e eu seria para sempre a ideia a ideia a ideia. 

dedicaria-se às crianças carentes, órfãs, maltratadas, corrompendo o conto sobre uma princesa na mais alta torre. uma princesa amaldiçoada desde o nascimento que não aprendeu palavras, apenas gritos animalescos. e buscaria absolver as minúsculas almas que deus deserdou, enxergando nas dezenas de traços infantes o imenso imenso olhar verde. 

e me escreveria dia após dia bilhetes em branco. e poria a tocar repetidamente "vapor barato". e me presentearia com suas preciosas orações madrugadas dentro das noites intermináveis.

e jamais conheceria outro alguém tão egoísta quanto eu.

começaria a fumar sentada na cadeira de plástico no quintal, implorando pescar a mim da memória que se torna falha. e passaria a cortar sua pele fina quando notasse que minhas feições te escapam ao rememorar imediato. minha voz pareceria mais aguda ou mais grave, um quase rouca e talvez baixa com o correr inexorável daquilo que se torna ultrapassado. você se puniria pela genética, pela violência alheia, pela lei imperiosa da física que não permite que mães ocupem dois espaços ao mesmo tempo. por não ter acampado no topo daquele prédio maldito.

e mesmo inexistente, eu jamais cessaria de te ferir. você nem mesmo saberia o quanto, o quão absurdamente eu sinto muito.

agora que meus olhos ainda têm o privilégio do sentido, posso te assistir sentada no silêncio que só o escuro provê. aguardando, na pressa de enganar a si mesma, que o portão role à direita e eu adentre outra vez mais, suja em ranhuras, implorando pela morte.

e quando os galhos dos vizinhos sacudissem à mais tímida brisa você se confundiria que é minha voz pronunciando "mamãe". o que é pra mim a palavra mais sublime seria em ti uma punição.

você deixaria intactas as bitucas fedidas que larguei no chão abaixo da janela, assistindo se decomporem nas chuvas ocasionais.

revisaria os detalhes circunflexos nas minhas fotos de criança. investigando criteriosamente onde errou.

você é minha dádiva. que meu corpo se faça pretérito imperfeito, que meu nome desapareça dos comprovantes. essa frase será sempre um presente inviolável.

eu viveria todos os dias possíveis nos nossos cafés às 7h da manhã. as tapiocas, os ovos, os seus bolos crocantes.

Ita. você é a rocha que ergueu a si mesma me ressuscitando a cada dia uma outra vez em 24 anos. meu único arrependimento é não poder aproveitar mais a graça da sua companhia.

se algo existir após, eu estarei à tua espera por décadas ou séculos. o lugar que me cabe é onde você existe.

mas por enquanto, apenas por enquanto, cumpro a rotina deliciosa de sempre colher flores silvestres que crescem rasteiras: as arranco com dó de levá-las à morte, mas me confortando que vale a pena teu sorriso -- mesmo ante às coisas que foram assassinadas. e te trago, ao tornar à casa após o expediente, apenas uma delas, ou outras vezes um buquê simplório improvisado. minhas flores à você compõem meus afazeres diários. e seu sorriso cansado diante delas faz valer a pena toda mágoa das espécies esfaceladas, exatamente as tais como eu.

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