[esse corpo]

esse corpo: de pronome demonstrativo do alheio

— ativo no nojo.
esse corpo, que não quero à noite, à mostra, às vistas públicas
vandalizado circunscrito ao vilipêndio
coisa pública sem lei, terreno inóspito cuja vida não se cria
corruptela aos ciclos de crescimento
organismo falido em declínio cavalgante
escravo espelhado do impulso pré-reflexivo
e expulso das causas naturais

esse corpo causa mortis tardia
nu em pureza tenha talvez primeiro sido
ou já tenha sido embrião fincado de espinhas
esse corpo parido como eu
nunca foi meu.


esse corpo partido
esse corpo exilado
esse corpo expatriado
foi feudo da escassez

e logo do diagnóstico, prensado em consultórios, 
termos técnicos e procedimentos de correção e higiene
desde sempre um caso errado a ser otimizado
em esteira fordista do que é produzido ao que seria aceitável

esse corpo cedo foi de homens e suas algemas emocionais, 
quando uma coleira me foi encarnada à garganta e a boca 
se cansou da palavra e até do grito por socorro, até do
grito fogo
foi assaltado tomado como objeto privado de homens 
cujo prazer falava mais alto que minha voz mutilada
moldado pelo desejo fútil de espécies anônimas em seu ofício de machos
violado como rotina a ser cumprida, um golpe de estado
direitos... "faça direito. abra-cadáver."

olhos opacos morridos

esse corpo pertenceu às autoridades às prescrições às drogas e seus efeitos em sucessão inevitável até ser de anatomia irreconhecível mesmo às mães que velam e choram aos leitos. um meio vivo mais que morto, impossível de identificar. erodido e erotizado, pornografado, emputecido e imputado, réu e ré, retrógrado voltando casas sem haver teto, chão ou asilo seguro. esse corpo foi colateral, dos feitos adversos. mutação e mutado.

a boca se arregala se arromba rasga os vértices em anatomia de violência e de ensaio ao grito como rito mas o som no vácuo não se propaga como o trauma o faz. fico sempre de boca escancarada no interior da cúpula de vidro acústica à prova de som e tato. meu hálito embaça o aquário.

esse corpo não cabe em mim
esse corpo não coube a mim. 
fruto do azar, fruto apodrecido proibido, nudez a não ser vista. eva chorou minha mesma tez.

não cicatrizado lesões escondidas sob as vestes largas para que não me indaguem não me barrem os espaços onde outros corpos circulam benquistos, despidos da vergonha, desfilam bonitos na vitrine da normatividade e eu na luz vermelha.
sob ela parece sempre ensanguentado. então sangro desatado.

enterradas junto aos restos do que não sou mais eu serão os pensamentos não verbalizados e tudo que eu jamais de novo poderei dizer. enterradas serão as palavras que não pude antes elaborar e articular. morta comigo será a história e a cultura dessa breve existencia e sua imensa lesão será jamais sabida, nem minhas razões nem meu desejo

meu desejo vetado amargado vestido do entardecido.

esse corpo cujos desejos jamais foram consumados, cujo prazer foi uma ilusão. esse corpo coitado, esse corpo

e minha trajetória esquecida no período curto impresso em dias.

esse corpo foi primeiro da doença, do império enfermo. foi do ódio circadiano.

esse corpo elétrico foi de fiação em pane, sinapses faíscas em curto circuito, esse corpo um blackout sem gerador. esse corpo se apagou.

então me esqueça o corpo e fique com as palavras. o não-dito transcende os limites da carne puída, não esqueça

deus, eu queria que fosse mais cedo
se mais nova
eu não teria tanto medo

mãe, você estava certa, essas coisas não se tornam antigas

eu só quero fazer parar
se um dia eu conseguisse dizer tudo sobre o desejo
meus olhos poderiam enfim rolar para trás
e eu não lembraria mais de nada

nem que o amor é só uma outra forma de delírio
de que existem outras chances
é apenas mais um algo a se perder em alguma parte alguma

de que existe outra chance

que o amor foi um dia como um corpo,
não esse corpo,
mas um de tônus esbelto,
límpido,
e sem gosto.
 

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