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Mostrando postagens de janeiro, 2023

e tenho esse olhar de mil jardas

de repente, os estímulos empalidecem. eu posso ouvir o roçagar de seu pesado manto negro. permite que o grande cão a guie, chocando, vilíssima, as correntes que o contêm. e, por sob o capuz, não há feição alguma. de repente não me recordo por que aquilo me fizera sorrir noutra manhã.  os comichões de velórios passados são agora como uma colônia de saúvas. eu ensaiei esse ato e tenho prontos cada um dos diálogos  é minha caligrafia ali,  mas não parece ter sido eu que os escrevi. como se, não alfabetizada, houvesse sido forçada a desenhar cuidadosamente as letras  para me coagir. eu já estive aqui um milhão de vezes e mesmo assim o solo parece intacto. eu posso ouvir seus murmúrios e embora saiba que podem não ser verdades, são insuportavelmente reais suas pronúncias. seu conteúdo faz sentido num ímpeto, a modo de eureka. eu sei que ela está aqui, agora, respirando pesarosamente no vértice deste quarto, imóvel, e que move seus dedos como quem toca um piano imaginário...

[semeasse cadáveres diminutos,]

  semeasse cadáveres diminutos, pequenos grãos abortados e também  pétalas amarrotadas que murcham em marcha,   massas indecifráveis de natureza morta intransplantáveis para uma tela qualquer que seja pois não existem tons tão rotos semeasse esporos de ódios, embriões do horror noctivo,  dessas espécies que vagueiam contra o sol, às avessas da luz, é esse instante em que o segundo adiante é sepultado ainda em curso, antes que  se faça escuro   não vingam narrativas paralelas a essa  jaula verborrágica onde ervas daninhas, delgadas como fios de cabelo  se enroscam entre as grades, arasse o solo com sangue grosso dormido, guardado  a fermentar seus figurados e desse de comer às suas covas irregulares frutas pútridas, suas filhas pródigas  com o pecado primeiro talhado nos caules e liames descendentes, com suas nervuras indóceis -- ranhuras que não pertencem, a priori, às estações  esculpidas todas no mais puro surto maníaco,...

exijo desse corpo

exijo desse corpo que ele faça jus a um funcionamento neurotípico e o comparo com mulheres magras e limpas de dedos compridos e finos, tilintando anéis, de pés alvos de unhas à francesa  de colo delicado com adornos dourados  de estrutura óssea delgada e leve e seus cabelos e dentes e cílios criados em laboratório   mulheres cujos ossos se projetam deliciosamente  em determinados movimentos como exibindo  o atestado de bom trabalho e pensando assim parece que eu fracasso na missão  que parece a única inerente às fêmeas  de entregar a beleza normatizada como um escambo para a atividade ultrarromântica  eu ajo injustamente e o sei, mas não deixo de fazê-lo, porque ultrapassa minha volição  já que lá fora existe uma cobrança malignamente implícita fantasiada  de criação autônoma de mentes histéricas sobre um corpo que, rigorosamente, transpareça sua colonização  que corresponda às expectativas de homens anônimos, mas não apenas, m...

ao meu ex-terapeuta

aninhar de volta a farpa que você remexeu uma vez já implantada e fez arder de novo transformando o relevo em ferida exposta, auto-imune contemplar meu flanco coberto de penas e saber que embora tenham nascidos prontos os outros minha forma não é aerodinâmica  por pouco mais que um gênero e uma cor não somos um mesmo -- e também sofre o terror das alturas pensando em si como refém das performances rasteiras estranha banalidade alheia é um pé frente ao outro 300 e tantos dias de incisões  sangrando em uníssono e após um hiato -- "eu",  pausa,  "acho que te amo" "e por isso",  você continua, "não posso mais ver você  são aspas que jamais se dão por encerradas e um verso suspenso planando denso e almíscar   como assim seria se-- "eu não tenho pacientes, eu ajudo pessoas criativas" mas te pergunto, o que diabos posso eu criar com isso? contestar o ofício irremediável dos espinhos tolerar o mal-estar fundamental e acolher que  há de se ter orgulh...

[não, nada de nomes difíceis, termos gringos,]

não, nada de nomes difíceis, termos gringos, versando sobre fronteiras bem delimitadas entre a sanidade e a loucura. nada de discurso pseudocientífico sobre esse limbo entre neurose e psicose. assim talvez você não me apelide usando uma semiologia técnica como adjetivo, não acuse entrelinhas a totalidade da minha personalidade como indesejada e doente, "doente" -- esse status fixo irrefutável e não um processo, mas essa carga elíptica de invalidez. talvez assim você não resgate os leprosários medievais buscando poupar o que é público dos meus rompantes, não se sinta tão à vontade para usar de expressões que ridicularizam um padrão cognitivo e aprenda que os extremos não passam de ficções convencionais. espero que quando você mencionar que reajo como uma criança, lembre que o que faz o comportamento dito infantil não é uma escolha deliberada sobre sê-lo, mas a escassez de arquitetura biológica e experiências significativas que maturem-no, e que ofereçam subterfúgios para progr...