e tenho esse olhar de mil jardas
de repente,
os estímulos empalidecem.
eu posso ouvir o roçagar
de seu pesado manto negro.
permite que o grande cão a guie,
chocando, vilíssima, as correntes que o contêm.
e, por sob o capuz,
não há feição alguma.
de repente não me recordo
por que aquilo me fizera sorrir noutra manhã.
os comichões de velórios passados
são agora como uma colônia de saúvas.
eu ensaiei esse ato e tenho prontos
cada um dos diálogos
é minha caligrafia ali,
mas não parece ter sido eu que os escrevi.
como se, não alfabetizada, houvesse sido forçada
a desenhar cuidadosamente as letras
para me coagir.
eu já estive aqui um milhão de vezes
e mesmo assim o solo parece intacto.
eu posso ouvir seus murmúrios
e embora saiba que podem não ser verdades,
são insuportavelmente reais suas pronúncias.
seu conteúdo faz sentido num ímpeto, a modo de eureka.
eu sei que ela está aqui, agora, respirando pesarosamente
no vértice deste quarto, imóvel,
e que move seus dedos como quem toca um piano imaginário
a cada piscar meu, ela assume um posto mais íntimo
me escala e se agacha sobre meu peito
num breve momento de distração meu
e subitamente está aqui, empoleirada.
e logo minha atenção se volta, compulsória,
para a sensação dominante de sufoco.
a música que ontem mesmo dancei é tosca,
a gargalhada espontânea é irritante e
as pessoas falam alto demais.
essa paisagem que me encheu os olhos antes é sem graça.
meu corpo se admite um campo minado,
o toque outrora terno se veste de intenções malignas,
e tenho esse olhar de mil jardas.
a rua em que moro se afunila, exatamente como um túnel,
e tenho certeza que aquela ruga ontem não estava ali.
a orquestra dos órgãos é fora do tom e me engulha
uma bile negra que aos meus dentes corrói.
exalo um odor azedo, ausente
para todos ao meu redor.
é ela a mais exímia artesã dos nós,
e a imperatriz da gravidade que tanto seduz.
e até que parta outra vez mais,
devo manter meus olhos esquivos de seu convite,
conquanto seus globos vazios
não cessem
não cessem de me engolir.