[não, nada de nomes difíceis, termos gringos,]

não, nada de nomes difíceis, termos gringos,

versando sobre fronteiras bem delimitadas entre a sanidade e a loucura.
nada de discurso pseudocientífico sobre esse limbo entre neurose e psicose.

assim talvez você não me apelide usando uma semiologia técnica como adjetivo,
não acuse entrelinhas a totalidade da minha personalidade como indesejada e doente,
"doente" -- esse status fixo irrefutável e não um processo,
mas essa carga elíptica de invalidez.
talvez assim você não resgate os leprosários medievais buscando poupar o que é público dos meus rompantes,
não se sinta tão à vontade para usar de expressões que ridicularizam um padrão cognitivo
e aprenda que os extremos não passam de ficções convencionais.

espero que quando você mencionar que reajo como uma criança,
lembre que o que faz o comportamento dito infantil não é uma escolha deliberada sobre sê-lo,
mas a escassez de arquitetura biológica e experiências significativas que maturem-no,
e que ofereçam subterfúgios para
progressivas identificação e manejo emocional,
controle de impulsos e tolerância ao mal-estar.

significa apenas que eu nasci propensa à hipersensibilidade generalizada,
como uma criatura cuja pele não se conclui e é arremessada ao mundo contraindo infecções,
precocemente exposta a situações inflamadas, que trouxeram um mal-estar exacerbado,
ao mesmo tempo que os outros não foram aptos a perceber os sinais as feridas ou ensinar
a dar nome ao que ebulia -- e que dar nome
é o primeiro passo para elaborar um pensamento dialógico --
e por isso eu me acostumei à sensação ininterrupta de desespero -- mas habituar-se 
não significa que dói menos, mas sim que
aquilo que NÃO dói deixa de fazer sentido.

e, assim, enquanto os adultos olhavam para monstros hipotéticos, o "e se..." e o futuro,
eu tive de sozinha descobrir estratégias para ser notada,
estratégias pueris com base em urgência e terror que funcionaram naquele determinado momento mas que hoje
agem como uma decantação, me restringindo a vida comum e me distanciando anos-luz
dos outros, que não são meus semelhantes,
pois tiveram seus privilégios biopsicossociais bem articulados, 
e agora vivo meus arco-reflexos como uma floresta de repertórios petrificados.

quando você me diz que eu só quero chamar atenção,
e converte essa assertiva em ofensa,
adota a perspectiva dos que defendem que crianças precisam chorar sozinhas
e programa-se a esquecer que
quem atenção precisa buscar 
apenas o faz porque não recebeu a qualidade necessária do olhar.

quando você me acusa de manipular
ignora que manipular exige obrigatoriamente uma intenção planejada anteriormente
e isso precisaria de tanta calma quanto eu não tenho
bem diferente
de alguém que se debate ferozmente 
ferindo a si e aos outros enquanto asfixia.

cavar a pele com cacos de vidro e lâminas enferrujadas 
ou preparar o nó complexo da corda ou a overdose de substâncias 
envolve tanta dor e medo quanto possível 
mas depender disso para se organizar
só indica que não se detém outros meios para tal.

quando você diz que teatralizo 
você encaixa meus fenômenos nas SUAS categorias
e me impõe a sua ordem das coisas, sem considerar que eu tenho minhas próprias significações 
e que talvez eu te pareça forjar uma cena porque
o que acontece fratura minha noção de realidade
e por isso meus movimentos te parecem estereotipados
-- afinal eu não estou aqui, estou
em um lugar suspenso de tanto horror e ameaça que
meu corpo convulsiona indiscretamente e isso
não deveria ser motivo para sua piada.

quando você me inferioriza pelos meus impulsos, não entende
que o descontrole nunca é uma questão de escolha,
o descontrole é um rabisco ingênuo de um comportamento que não foi corporificado
uma reação autônoma em nome de uma sobrevivência posta em risco

quando eu explodo em ira e você me dá essa expressão facial de reprovação, 
automaticamente me julgando como patética e inapta,
ignora que a raiva é apenas uma emoção primária, uma reação frente à negação de direitos e necessidades básicas, 
mas que passa por juízos de valor, e que é por isso
que você só me vê como um animal a ser contido

quando eu faço uso do grito e reduzo a frangalhos o ambiente circundante,
é porque minha garganta e minhas mãos imploram por algo físico para descarregar o sofrimento
e me segurar cerceando meus movimentos censura minha autonomia, e me invalida o exercício 
de descobrir como lidar de outras maneiras

e ainda assim, trocando os batismos, 
de "borderline" para "desregulação emocional" 
sempre haverá algo tal que designa um não-encaixe, 
que sobre-existe uma licitude e uma regra moderada,
a qual eu não faço jus

existe ainda uma expectativa sobre como eu deveria ser, sentir e agir
ao qual eu não correspondo 
me estripando no calvário de correr atrás desse ideal abstrato 
tendo de construir a ponte 
enquanto tento me equilibrar sobre ela e atravessá-la
simultaneamente

experiências fronteiriças são aquelas que por motivos também arbitrários,
instituídos por uma psiquiatria hegemônica,
pressupõem não qualquer algo natural 
mas um não-lugar feito tal
e sobre ele não há relatos objetivos,
pois só o conhecem aqueles que lá já foram sacrificados

não há prato cheio maior para a institucionalização 
do que a revolta dos grupos sociais restritos à performance catatônica 
porque a raiva faz barulho e incomoda. ela mobiliza matrizes. e por isso eles a convertem em justificativa legítima 
para a re-colonização de corpos 

e o adoecimento é também uma força motriz de denúncia política
sobre o abuso das autoridades
sobre as carências sociais
sobre a falência da organização familiar
sobre o silenciamento imposto aos menos favorecidos 
que escancara desigualdades que não são, a priori, sobre
disfunções orgânicas, hormônios ou neurotransmissores, 
mas sobre acesso ao que é público 
sobre o poder aquisitivo de COMPRAR a sanidade e o bem-estar
e o status de caber no dito processo civilizatório

sendo também uma denúncia sobre
a psiquiatrização como uma arma eminentemente masculina 
contra aquelas que se negaram a se ater ao papel de fêmeas dóceis que aceitam, languidamente, a degradação imposta
e é também por isso que hoje
diagnósticos com maior prevalência em populações femininas se pretendem assumir
o ethos de mulheres malévolas,
cujos critérios de classificação versam, na verdade e ironicamente,
sobre homens absolutamente normais

e que sobretudo por ter negada a voz
nossas comunicações interceptadas
se tornam discursos fragmentados convenientemente categorizados
como psicóticos, anômalos e sujeitos
a intervenções invasivas

porque a doença é sempre uma instância definida
por aqueles que constam eleitos e que se dizem
devidamente sãos 

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