do not resuscitate
os bilhetes nos bolsos
ou sobre móveis
são feitos de trivialidades e burocracias.
não há nada romântico, poético ou estético
dígitos de um documento,
números de telefone
“não entre no quarto, não deixe que ele veja
transfira meu dinheiro para sua conta no banco
em caso de parada cardiorrespiratória, favor
não ressuscitar
doem os órgãos funcionais
de resto, opto pela cremação
eu amo você como o que faço agora parece
dizer o contrário
perdoem pela bagunça e pelo incômodo”
perambulando pelo labirinto de metal
com um acesso fincado na veia
exigiram um familiar ou alguém que
autorizasse minha saída
e tive a expressão órfã das mulheres
que não têm quem as leve para casa
que não têm nem mesmo
casa
e essa veia conectada
traduz o silêncio
e a solidão que precede
o auto extermínio em massa
a evidência sucessivamente reiterada
de que não há viv’alma
a comunicar antes que esteja feito
eu quis te ligar, ainda que relutante,
mas, com certo esforço, percebi
que havia também uma intenção entrelinhas
de sinalizar que desejava ser acolhida
e suscitar alguma comoção
– justamente o que você me garantiu
que jamais faria
nenhuma responsabilidade integra
a tua palavra líquida sobre
importar-se comigo
é assim que acaba:
estranhos
que há algumas manhãs
despertavam juntos.
minutos antes da decisão
eu ouvi dela que
“realmente você não consegue lidar
com nada que seja diferente do que pensa.
não há como ter uma conversa contigo”
sílabas forjadas estacas, morfemas
ressuscitantes de memórias
fonemas
realizadores de profecias arcaicas
como de praxe
é meu modo externado de existir
que não deveria sequer fazê-lo
lutei em campo para ocultar o olhar
enquanto me sustentava em pé
em público
a um custo social sobre-humano.
eu sou esse corpo que não suporta
a própria função banal
de manter-se ereto.
realizo em insight que
meu pai, um visionário,
se absteve do martírio
desde que eu crescia
olhos e unhas.
realizo em insight que são
deterministicamente invisíveis
quaisquer progressos clinicamente relevantes.
que não alcançam a rua
a vitória das risadas
ou da jornada laboral cumprida a risca
as demonstrações assertivas de afeto
o maior controle de impulsos
a altíssima frequência de ação oposta
a aquisição da habilidade de comunicação efetiva
meu hábito treinado de auto-análise
os valores que defini como orientadores
ou os demais esforços hercúleos
para ajustes comportamentais
que me capacitem a me adequar socialmente.
eu performei a cool girl –
com uma desenvoltura digna de prêmio patriarcal.
fiz-me interessante e irreverente
como a mulher validada por homens
por emitir comportamentos alternativos
ao imaginário masculino sobre padrão de mulheres.
fiz-me sedutora e atraente
na medida exata determinada por eles
que pede por favor a atividade da tua nudez
e emite elogios gratuitos a ações medíocres.
fiz-me a própria disponibilidade,
aquela que se escancara
como uma cadelinha submissa de raça
em ininterrupto esforço de transparecer apenas o desejável
em ininterrupto esforço de desviar da tua visão periférica
os golpes homéricos do passado
tentando nos construir
como primeira pessoa do plural
do futuro do pretérito.
mas a sua companhia perfeita é aquela
que expressa um sentir morno e insosso,
e economiza nas manifestações de afeto
delicado como as pontas dos dedos
correndo delicadamente pelas tuas costas
cobertas por tecido
para não abandonar digitais
como o que não ousa triscar
na sua vida íntima
como o que te deseja
mas sem querer conhecer muito mais sobre ti
e tem vetados muitos terrenos
e se contenta verdadeiramente
com os irrisórios frames
que você disponibiliza homeopaticamente
e é obrigada a não ultrapassar
fronteiras demasiado estreitas
você exigiu a distância segura
que eu não me aproximasse o bastante
para ser necessário te demandar
qualquer ajuste de lógica ou comportamento seus.
é como você é,
você mesmo diz,
rispidez. e esquiva.
é assim que começa
e acaba da mesma maneira.
você quis a mim
apenas sob condições episódicas, transitórias,
lendo o mesmo livro na mesma página
subserviente às suas interpretações unilaterais
e às suas anotações
ao lado dos parágrafos
como um personagem coadjuvante cuja história
deve ser um spin-off
quis que eu admitisse,
apequenada,
ter me precipitado
quando eu dei meia volta do abismo
para te encontrar no meio caminho
como você deixou pairando no diálogo,
eu fui esse animal atropelado
que você se negou a adotar para cuidar
visto que é terrivelmente cansativo,
ainda que eu jamais tenha solicitado
ser cuidada por você.
e eu
poderia ter qualquer nome e forma
e maneirismos e aparência
para habitar tua cama
contanto que eu desertasse
meu próprio nome e
minha própria forma
e deixou claro que eu falhei
ainda que tenha cumprido
exatamente o que você definiu
como valores inegociáveis de convivência.
você imediatamente esquecerá
como era meu nome na sua boca
ou a experiência de me ter, gratuitamente,
colada às tuas costas
como um bebê esticando os braços
para ganhar um afago
como quem pede um favor
e cede ao discurso contemporâneo
liberal e esvaziado
de que eu deveria me amar mais
quando essa “recomendação”
atua apenas como um potencializador
do constrangimento vital
por não ter sido exposta a contingências
que estimulassem e ensinassem
a fazê-lo – em suma,
um repertório complexo
que independe da mera volição
e sobre o qual não se tem
total controle
você disse que a não unicidade das pessoas
e a forma volátil como você passa por cima delas
é coisa inerente à vida.
e eu digo
que não
isso é sobre você
atribuindo como aceitação da sua personalidade
o hábito de descartar as pessoas
a torto e a direito
que você considera inelegíveis
por porquês fúteis
você ainda concluirá
de maneira limitada
que certos fenômenos de auto aniquilação
se resumem a um evento específico
que, sem dúvida, você julgará
como ridículo e insuficiente.
e no final, eu serei
a personagem dramática, descabida e inapta
em histórias jocosas contadas
à cabeceira da cama
mesmo que eu
nunca tenha tido
alguém a ler para mim ante-sono
narrativas diferentes
em que essa personagem
pudesse falar
por si mesma.
no entanto, em minha defesa,
garanto, ainda,
que você jamais esteve escrito
no bilhete que havia no meu bolso.
e talvez essa sua ausência
no último ato
seja a única coisa que já fiz por você
que te deixaria
suficientemente satisfeito.