genesis
quando isso começou? e isso é pergunta que se faça? mas você ousa, eu gosto disso. olha bem que eu não sei. também não foi disso de acordar, olhar em volta e terem sumido as cores. o povo pensa que eu vejo em tom cinzento, ou até preto e branco, uma suposição antitética, dicotomizando a mim. mas não, eu vejo as cores, opacas, claro. uns vermelhos mais vibrantes, aquela cor de sangue fresco do miolo do corpo, uns pretos mais foscos como o preto mais preto do mundo. eu tenho visto umas cores, só não faço parte delas. mas retomando, quando isso começou. não existe uma fronteira rígida que me denuncie, hoje eu só me arquiteto na desistência, acho que foi se chegando como uma gangrena - bem discreta tomando tudo pelo subterrâneo, até que eclode e você perde um bocado de si. o que eu perdi de mim? se eu disser que não foi tudo estaria mentindo, e eu só minto à noite. eu vi essa peste me comer as formas, me sugar a flor invertida dos seios, tirar meu leite sacro feito de ideia. eu vi essa peste me entortar a espinha, me inflamar vértebras, me chupar o rubor de mancebo da face, calejar meu nariz sangrento. eu vi essa peste estriar meus centímetros, me seguir no meu metro, me obliterar cada sonho, me mastigar insone, me adormecer o botão de rosa mística entre as pétalas da pele. como mandar embora? eu tenho lutado, você não vê? não vê como nunca é o bastante? como cobram energia depois que os demônios tiveram em mim seu banquete? e eu não tenho nada mesmo contra eles, cada qual existe pra se fazer, eles inclusive são os melhores na arte de dialogar, tanto quanto eu me tornei a melhor na arte de perder. pra eles eu sou uma delícia. é tentador isso de deixar algo com água na boca, não acha? então às vezes eu nem nego o ataque, eu o recebo com um tiquinho de tesão, e gozo o sangre grosso e grogue escorrendo. e é fácil se deixar ser devorada - você só precisa olhar ao redor e lembrar um pouco, só o mínimo - e todo ódio vem à tona, maior que exaustão e medo e desejo. o ódio maior que o medo, você pode imaginar? eu acho que a maior palavra do mundo é desejo. e os meus foram todos avessados e corroídos. se você um dia se perguntar que diabo foi feito de mim, olha meu desejo - cheio de culpa. de miasma. de trauma exposto.
quando isso começou, eu era uma menininha. e depois, à primeira paixonite, mostrou-se: porque não há morte por outro motivo senão a paixão, e eu desejei avidamente morrer nos braços dos que não me queriam. a morte minha maior paixão, sendo meu presente à carne e ao deus que por mim deveria olhar. me molha planejar esse evento final: meu corpo profano estendido em gentil desconsciência, o cabelo por acaso uma coroa nesse rosto pálido de nunca-mais. os lábios lacivos esbranquiçados em breve lares de predadores vorazes e microscópicos, o nariz imponente com bolinhas de algodão caso meu cérebro se liquidifique e insista em escorrer enquanto mamãe e um ou outro tio me contemplam, eu demais docilizada. de mim serão ditas umas bobagens meigas meias mentiras, mas necessárias pra significar uma saudade efêmera. mas eu? eu sempre fiz greve de mundo, fui horrível animal, sempre instinto e pulsão. ladrando pro nada e ganindo enquanto dormia. quis comer e ser comida, simultânea e ciumenta, das outras vidas que endoideciam miocárdio. expulsei sem dó o típico, sentei a sós com a psicose, arreganhei a pernas pra ser lambida. e como começou? eu me entreguei pra voz atrás da orelha, o hálito quente de túmulo me instruindo "tome a si como um tiro; o último", e eu descobri como não sair pela culatra, como fugir fervendo, mirar o outro, matar o vital, ricochetear e virar o fatal da coisa toda, sem drama. começou, começou antes do sol ser de se apreciar, antes do cigarro ser apagado pela metade, antes do pôr do sol ser anunciado (eu odeio a noite porque ela revela os abandonados). começou antes do homem que eu amo se retirar das minhas entranhas, antes do homem que eu amo me conhecer, antes do homem que eu amo deslizar da contração entre as paredes macias da vagina e dos arquejos de sua mãe. começou antes dos poetas serem os grandes - descritos apenas como jovens baderneiros e românticos e anticristos, antes do país mentir independência, antes das minhas avós serem queimadas vivas em toras por conhecerem ervas antiinflamatórias, antes dos meus ancestrais vermelhos e nus serem massacrados. começou antes dos primatas seguirem suas distintas trajetórias evolutivas e se tornarem eretos, começou antes de um aglomerado de células aquáticas passar por mitoses. no magma incandescente sob as crostas e na era glacial, eu havia - o ódio e a dor e o desejo, uma coisa só, una, santíssima trindade, e assim eu me fiz verbo, mas nunca luz.
primórdios que não os meus podem abraçar esses ruídos. houve um tempo em que eu não era empecilho a mim mesma. minhas mãos ainda eram mornas e capazes de carícias. agora o automatismo das falanges estrangula o que quer que se aproxime. eu matei assassinos e matei amantes; eu não matei a mim porque seria fácil demais, e as pessoas romantizam a via crucis, certo? os homens e mulheres que puderam me ver fugiram aterrorizados com minhas mãos metamorfas de garras. minha boca descarada e os olhos apagados que só têm pupilas - ambas as primeiras a morrer, antes do fim das frases, escorrendo e garantidas nessa estupidez que tenho de não deixar o corpo desmoronar por completo. o que jaz no encontro entre minhas coxas perdeu romantismo. cada pedacinho da gente conta umas histórias miseráveis pra caralho, sabia? e meu baixo ventre, cansado... puto pelo frívolo, pelo títere, pelo título, pela propaganda do homem-ego, pela fricção desritmada, despropositada, casual. um sacudir em tônus morto. casual não como uma noite de conexão mútua entre desconhecidos, mas vadia como a vaga percepção de dentro de você haver um ente do qual você nada sabe nem pretende. dormência. a demência de não esperar a cura e banhar os outros do pútrido, os decompostos de paixões passadas, voltar à casa manhã cedo se coçando pra livrar a pele daquele outro mais qualquer que qualquer outro.
hoje é sábado à noite. as noites eram nossas. quem amanhece com você agora?
quando isso tudo começou? as perguntas mais óbvias sempre são as piores. eu costumava dançar. depois que depilei as pernas pela primeira vez, depois que me pintei segundo a beleza que me equacionaram, depois que obedeci o primeiro euteamo, depois que abri trêmula as pernas pro primeiro de outros homens que juraram me proteger se eu abrisse bem as pernas. homens que odiavam o sangue menstrual e eram fascinados pelo sangue traumático dos meus túneis - por causa deles, hoje, labirínticos mesmo pra mim.
interditei passagens. desviei estações. não sangrei, contra epifania, mas as feridas cegas nunca foram mais brandas. há nomes próprios que não cessam à noite, ainda. é comum.
pelas metades da adolescência, emendando abusos, fazendo questão de não saber dos perigos, forçando minha defesa mais desafiadora. foi quando "começou". contemplei tantas vezes a lindeza lá de cima - homens solitários bebendo uma cerveja choca ou um whisky caro, irmãos discutindo mais uma vez, famílias jantando sem palavras na mesa, uma mulher vencendo a cerca de proteção do décimo primeiro andar, uma outra que abortara e dera descarga no que viria a ser a cria, um casamento destruído pelas traições, outros seres iguais que não identifico, tudo isso apenas luzes de teto, pontinhos brancos e dourados tão tênues em edifícios - as narrativas se confundem lá no fluxo inferior. eu tentei argumentar (de palmas unidas e tudo) com quem me mandaram, mas os homens sempre têm tempo demais sendo homens.
quando tudo isso começou?
você continua insistindo na mesma pergunta rasa, tesa, como se um início dentro do que é humano fosse possível, como se isso importasse perto do que vem durante ou depois - meus não-acontecimentos. se eu pudesse mesmo responder isso já teria puxado o gatilho, cedo aprendi a me retirar.
e o que há além? você vê? toda essa gente dizendo viver, na verdade passa seu ciclo natural esperando - uma recompensa um sentido um porquê um agora - porque não, entende? isso aqui? esse amor turvo sempre condicional e cheio de brechas?
então por quê? é isso que você quer saber? por que ainda não a corda no pescoço, os pulsos por esvaziar, as inscrições no jazigo? por hábito. por mania. pra chamar de meu e minha. pra chamar de meu e minha.
nem que seja o meu ódio-desejo-medo.
e minha Dor, maiúscula. feroz. selvagem não catalogada. a me extinguir por trazer à lembrança meus outros, antiquíssimos, "meus".
minha Dor, que é irremediavelmente maiúscula. que é suicida. mas que não é coisa alguma senão minha.