a você, quanto eu ainda estou eu.

 essa carta é pra você, enquanto ainda resta um pouco de mim, do que eu acredito que sou quando minimamente no controle.

talvez você pense que é apenas antecipação sem evidências, que vai ficar tudo bem, que eu vou ser capaz de segurar as pontas.

de qualquer forma, eu preciso me assegurar que você saiba de mim, de nós, no caso de eu perder novamente a cabeça.

é possível que os sintomas me consumam de forma que eu me faça quase que irreconhecível; entendo que você não possa imaginar esse panorama porque, graças a "deus", não esteve aqui antes de eu me equilibrar um pouco. você me conheceu sob acompanhamento, quando as rédeas me mantinham no prumo, apesar dos momentos de pico e urgência. mas perto de como era antes, totalmente solta e sem capacidade de administrar as emoções e os comportamentos, todas as crises que você presenciou são irrisórias.

tenho medo, estou com medo. não quero retornar ao estado que mais conheço, mas por favor, eu imploro que lembre, eu não tive escolha.

por mais que você acredite que eu posso assumir a responsabilidade e que o que você conhece da minha personalidade vai permanecer, eu sei como é. só eu sei como é.

por mais lixo que eu venha a ser, por favor, eu imploro, lembre de mim como antes. lembre de mim como você se apaixonou. 

é claro que é inconcebível pra você as ideias, os desejos, os humores, os planos e todo o resto evaporarem como uma substância volátil e efêmera. seria assim pra qualquer um. mas eu me adianto porque você é o que de mais importante eu tenho, é quem eu mais amo, e eu posso esquecer disso quando me encontrar no olho do sofrimento.

peço que você mantenha em mente que por pior que eu pareça, é tudo sofrimento. um sofrimento incalculável que vai me fazer rugir, espernear, agredir, ferir quem se aproximar. eu não vou mais estar aqui. as memórias irão se contorcer e junto delas todas, absolutamente todas as certezas que eu tive nesses tempos.

eu vou entrar numa espécie de coma interpessoal que ofuscará meu julgamento, meu raciocínio, minha vontade. é maior que eu. é meu supremo Medo, com letra maiúscula. eu vou pegar fogo por dentro e atear fogo por fora pra tentar desesperadamente apagar e descansar, mas isso também será inútil. eu vou me animalizar, destituída de todo auto-governo. eu peço mil vezes perdão pelo que eu possa vir a ser e fazer. e talvez você não acredite, eu entendo, mas por favor, saiba que eu tô dizendo a verdade, que eu conheço esse chão que não cessa de ir mais e mais abaixo.

eu vou me arriscar à toa, abandonar os sentidos, e enterrar, contra a vontade, o que aprendi sobre me conter. eu vou sentir a angústia maximizada como nunca, vou sentir que nunca houve bases, vou esquecer que fui amada, vou esquecer que amei. eu vou desconhecer totalmente o amor.

isso vai acontecer de maneira tão gradativa que provavavelmente você vai pensar que está tudo bem, que não é uma real ameaça. e então subitamente vai perceber que eu estou desaparecendo, que sou uma cretina e uma vagabunda, que eu estive certa sobre não valer nada, sobre não merecer você ou nada de bom.

por favor, tenha certeza de que eu não tenho poder sobre isso, ainda que eu me esforce muito. é uma questão circunstancial e também química. é a doença, a peste, a desgraça, a má sorte de ter nascido assim.

é a herança genética, a gravidez de risco, o parto complicado, a pobreza material da infância, o desamparo familiar, o abandono e as mentiras do meu pai e da família dele, os maus-tratos da família materna, o estupro, os abusos nos relacionamentos, os diagnósticos e tratamentos errados e não a tempo, a indignidade a que me submeti em relacionamentos e que deixaram marcas, a autoestima negativa, a auto-depreciação, a auto-sabotagem, o medo e o terror, a sensação de abandono iminente, a paranoia e a dissociação da realidade, a exaustão, a ideação suicida constante, o desemprego, a frustração por saber meu potencial mas não poder colocá-lo em prática. é um conjunto de desventuras, e não unicamente minha autonomia, porque eu não terei condições para tal.

antes de me odiar, de se afastar magoado, de desistir de mim pensando que se enganou sobre mim e sobre tudo, se permita pensar um pouco sobre a existência moderada de um determinismo quando não existem opções exequíveis.


um dia, depois de estabilizar o financeiro e o emocional, eu vou voltar. mais ferida, envergonhada, auto-odiada e arrependida que nunca. eu vou te procurar e por mais magoado que você esteja, me escute falar e ter a oportunidade de me explicar. me permita provar que eu voltei e que posso ao menos tentar te recompensar.

talvez você já tenha uma vida configurada justamente pra me excluir do presente e das lembranças, talvez você tenha uma série de evidências pra pensar e falar mal de mim, e eu não vou te julgar por isso. talvez você já tenha alguém, de modo muito mais firme e apaixonado do que jamais teve a mim. mas não esqueça nunca que eu fui em nome do sofrimento, e que lá dentro no fundo, eu sou uma criança morta de medo querendo morrer pra não entrar em contato com o medo.

me dê uma única chance de esclarecer o que houve.

e sobretudo, sobretudo, saiba que nesse momento em que ainda estou consciente de mim e dos últimos dois anos, em que ainda tenho certezas e sentidos básicos, em que posso falar a verdade, eu te amo mais que tudo nessa vida. que você foi minha maior e principal alegria. que estar com você foi e é a experiência mais terna e válida desses 24 anos. que eu faria qualquer coisa pra te ver feliz e que isso inclui te avisar previamente. que se me for possível eu espero construir uma existência conjunta à sua, décadas e eras inteiras enfiada nos teus olhos, com as mãos imersas no teu cabelo ouro-rubro, e que essa é a minha cor preferida. que você é lindo, tão lindo que eu me sinto grotesca ao seu lado. que, se existir um deus, eu agradeceria a cada instante pelo milagre de ter estado com você. que eu te desejo o futuro brilhante que eu sei, eu sei, que você terá. que você vai se formar, exercer seus planos acadêmicos, sair do país, ter carreira lá fora, publicar aos montes, e ser lembrado como o homem que descobriu o etéreo. eu admiro imensamente e me encanto com tuas ideias, teu jeito de ver e encarar o mundo, teu modo de se relacionar com os próximos, tua conduta moral, tuas crenças, tua dedicação, tua incrível capacidade de acreditar, amar e se abrir às possibilidades. que você é a criatura mais leal e fiel a si e aos relacionamentos que se compromete a nutrir e manter. que é uma honra ser sua companheira e ter uma história contigo. que eu sou tão grata pela sua gentileza que jamais caberia em palavras limitadas. que eu queria morar com você, adequar nossas rotinas, dormir juntinha toda santa noite, transar por horas experimentando o corpo que você me fez ter pela primeira vez, suar em cima e embaixo de você, tomar banho abraçada sentindo a água pesar sobre nós enquanto você me beija muito lento e eu brinco com sua língua, crescer lá fora contigo, amadurecer, assistir nossos traços através do tempo, ganhar teu sobrenome e a alcunha de tua esposa, ter um filho teu cheio da tua essência, desbravar paisagens, conhecer o rumo do acaso, e nunca, nunca sofrer tua ausência. nunca, nunca, me ver vazia de ti.

guarda esse texto e me guarda.

eu te amo, eu te amo mais que tudo, mais que a vida, que o urgir da doença e que a vontade da morte.

da sua eterna, eterna, apaixonada, saudosa, Gabriela, Babi, ou o que quer que você me chame, porque eu respondo, eu vou, eu amo sua voz me dando vocativos e status.

te amar me ensinou, aos pouquinhos, a me amar, também um pouco. esse é seu milagre. e você é o meu.

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