escrever tem se tornado um peso horrível
escorro as mãos pelo rosto. mesmo a leveza rasga -- há partículas de vidro sob a pele
como minúsculas pétalas brotando das feridas
decerto há certa estética nesse estrago
tem emergido outra vez o que eu jurava estar extinto
esse bramir da Angústia que me torna
episódio de pessoa que só reage na urgência
sim, eu estou furiosa.
ainda que eu me odeie não suporto que você fale assim comigo
por isso dou as costas -- mas você me segue, esbravejando que saí de cena
e então me arrasta de volta com suas conclusões destemperadas
assim nossas silhuetas dançam grotescamente pelos cantos dessa pequena casa,
apontando dedos contra os rostos contorcidos
reclamando respostas imediatas, acusando performances ensaiadas.
- o que você fez, você me pergunta,
- o que você me fez fazer
não lembro de assim te conhecer, esse você nunca
passou pela minha cabeça
que tom é esse que se engendrou nas suas palavras
essa fera aí, onde é que esta fera estava
enquanto eu me apaixonava...?
e como eu te evoco outra vez? e como eu trago como você se mostra a mim
às tuas próprias vistas?
aqui eu, esboço de mulher, acidentando que atrocidades fluam pelas palavras
um império de impulsos verborrágicos ungidos por socorro.
imploros de ajuda e denúncias de violência impronunciados.
sim, é possível -- que a realidade seja contorcida nessa minha experiência,
que o imediato ao me atravessar se refrate,
grosseiramente distorcido e fraturado
mas mesmo isso ainda não te autoriza a deslegitimar meu discurso.
você condena meus rompantes como qualquer um
que jamais houvesse me ouvido contar sobre mim.
me agride com a estranheza maciça com que me olha
ao dizer que tudo isso é desnecessário.
eu custo a devolver suas solicitações porque sua voz está cada vez mais
baixa e...
...distante
longínqua. embrutecida como talhada em pedra. quase uma memória
remota e cruel, à qual não se quer fazer menção.
desculpe mas não sei onde estacionar os olhos
você rosna e, ressoando, eu me mordo.
então eu piso seus passos em hábito
na lateral noto meu reflexo esbaforido
e penso que maldito seja o percurso evolutivo
em que esse germe de miséria se nidou na história da minha espécie.
atravesso o punho contra o espelho e minha imagem explode em um mosaico
é lindo.
logo logo o sangue se faz um rastro bem discreto (que decepciona minha intenção)
enquanto as vítimas vítreas despencam aos nossos pés.
[shhh. vamos recolher. e dizer à mamãe que foi arte da gravidade.]
seu vulto avança escarnecido sobre mim. sei que eu vou pagar por isso
fogem dois gritos de mim porque eu conheço bem essa expressão
-- eu a tenho contra mim as vezes --
não faça comigo o que também faço. não faça comigo o que desejo fazer a mim. eu até acho que mereço, mas não quero dar esse prazer e essa dor a nenhum outro que não eu.
acontece que quando você me olhou assim eu pude jurar
que é exatamente esse olhar
que uma mulher vê pela última vez que pode enxergar algo