moinho

uma vez, escrevi suja
e, quando em nudez, você desviou o olhar para não ler. ainda assim, beijou as coxas, onde existia a palavra, e seus entremeios
época dourada em que a pele era gentil com o toque
e os corpos eram mutuamente obcecados -- caso de conjunção metafísica e etérea 
a maciez dos diálogos a nível de carícias verbais
e nosso asilo inviolável ficava no interior do presente absoluto 
-- estávamos-no-mundo bem no meio da festa --
dessa fissura na temporalidade compartilhávamos a infinitude do imediato. eufóricos. agora,

há dissonância por microscópicas ranhuras
e com quereres ambivalentes revelamo-nos outras pessoas --
muito de nós foi suprimido, feito sujeito elíptico, em busca de suscitar o amor no outro 
e assim relegamos ao segredo excertos fundamentais. 
sangra a hipótese de que,
caso nos deparássemos com essa inteireza, 
que inclui os elementos incongruentes com o desejo, 
não duraríamos a nos olhar.

agora 
nossas trocas são insuportavelmente confusas, 
ocas de núcleo, não se sustentam em objetivos,
estendem-se através dos dias -- com os dentes cerrados, rangendo
as palavras se enchem de nós na ambiguidade das intenções (essas não pronunciadas)
as micro-agressões ocorrem em cascata e eu já nem sei 
sobre o último motivo, um minuto atrás, que me evocou esse pranto. 

a abundância de falas perfurocortantes me dilaceram, 
e aveludam-se em sequência, reconstruindo esse corpo como um possível objeto de desejo
apenas para podê-lo moer uma vez mais nesse ciclo infindo --
erguê-lo apressadamente empilhando os órgãos no lugar errado,
para logo ser fiel a esse moinho de arruinaduras.

e fazemos isso porque é a única estratégia de contato de que detemos agora, 
é a única maneira possível de estarmos próximos. mesmo que escandalosamente arranhando uma ferida escancarada.

ontem -- mas também amanhã -- você trouxe à tona expressões batizadas pelo ódio 
cuja memória é até musculoesquelética: atravessa o corpo como um tremor um debater-se,
é como fugir de um incêndio ateando fogo em outro feno
ou nos banhando em querosene,
mas, veja, eu carbonizo de qualquer jeito

ambos removemos a pedra,
e emiti um repertório que há anos julgava extinto.
pródiga, retorno a nessa masmorra tão familiar,
onde só existo em desespero, a caçar rastros de afeto e reafirmação.
houve um espectro de pedidos encarecidos
anteriores a um cinto aprontado na maçaneta.
ontem -- mas também amanhã -- eu gritei o próprio eco. e o eco se perdeu órfão no labirinto, para depois refratar carnívoro.
enquanto isso, você estava exausto dessa dinâmica e não te restava paciência.
hoje quer saber o que houve porque meu silêncio pretende ser maior que o mundo,
porque cobri meu corpo esfolado com um capuz de carrasco.

então dessa vez eu não escrevi nada
até porque você reclamou que meus textos são excessivos e inúteis 
e mesmo escrita minha palavra não existiria
pois também estar vestida apenas dos teus olhos 
não é mais evento nosso.

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