hoje você não disse boa noite

não percebi as horas passarem enquanto você se empenhava em me verbalizar os motivos da sua partida,
como se os houvesse ensaiado, um discurso canônico, na ponta da língua.
cada movimento do meu corpo te irritava. você repreendia meu choro por estar interrompendo o monólogo
e tentava controlar cada expressão minha pra que fosse o mais conveniente possível pra você -- minha convulsão agonizante era um ultraje à sua oratória -- mordi meus braços para permanecer quieta --
me exigia tornar mais discreto o burburinho fisiológico (que implorava pelo amor de deus algum nível de previsão)
mas prematuramente eu supunha onde você pretendia chegar.
-- quase pedi perdão por estar ferida --
enquanto você me assistia, impassível, escalonar até o limite do pranto desesperado. recolhida ao chão, com suas palavras a me encurralarem. inofensiva. 
então finalmente pronunciou que estávamos acabados, mas deixando propositalmente ambíguo -- tenho absoluta certeza que você sabia o quanto isso me dilaceraria --
atribuiu a decisão a um improviso ajustado à minha reação -- pois a princípio não planejava, mas meu comportamento desorganizado e agudo o induzira.
dessa forma até mesmo o abandono foi posto como minha responsabilidade.
você juntou seus pertences e deu as costas, indubitável, à minha imagem prostrada. todo constrangimento e dignidade me escaparam e me pus de joelhos -- as palavras permaneciam engasgadas e nada puderam fazer por mim. mas toda aquela minha dor nem ao menos te tocou.

durante esses anos, eu me esforcei arduamente para corresponder ao status de "boa companheira". logo entendi que isso implicava uma domesticação voluntária -- estar no controle de mim e me afastar de ações que parecessem genuinamente minhas.
assim, eu abracei suas causas. eu performei a sua subjetividade. eu imitei seus gestos, preferências e expectativas. eu me moldei com as mãos chamuscadas a ser tragável. e, veja só: não foi o bastante pra te manter interessado. até uma outra versão de mim que entrega seu máximo ainda peca lacunas. 
eu acreditei veementemente que isso em você -- e de você para mim -- era amor. que todo o antes provavelmente não o era, mas agora sim, e por isso estava tudo bem ter enfrentado tanta adversidade. foi quando os sentidos começaram a borbulhar e a euforia corrompeu a ótica dos detalhes que não se encaixavam. mas agora imagino que o amor não faria isso. então não sei como ele deve se parecer. 
dizer que ama alguém e partir porque esse alguém não esteve momentaneamente apto a suprir um desejo determinado é ensinar que o amor exige condições arbitrárias cujo bem-estar é unilateral. 
esperar que eu conclua algo diferente é superestimar minha capacidade resolutiva, isto é, você sabia onde a clivagem me levaria. mas isso - isso também não te interessa. 
assim parece que estarei permanentemente sozinha. até que o verme tripudie sobre os restos.

confiei em homens que esbravejavam seus princípios de "homens de verdade" com afinco e orgulho diante de uma maniac pixie girl. e que sustentaram tais princípios até o virar da página. 
até descobrirem que essa mesma garota era um produto externamente cintilante de abuso e sexualização sistemáticas, abandono precoce e excesso de contingências punitivas.
não há homem mais maravilhoso do que aquele que acredita ter alguma oportunidade de transar com você.
esses homens demonstraram total e completa disposição em acolher minhas expressões neuroatípicas, jurando haver beleza e atratividade nessa "diversidade" de existência, valorizando-a e prometendo inventar pra mim um espaço no mundo comum. 
foram os mesmos que, quando desafiados de sua hegemonia, qualificaram a outrora "diversidade" como inapropriada, inadequada, exagerada, ameaçadora, manipulativa e dramática.
agora, eu não acredito na polidez dos discursos públicos.
diante da incongruência, tive de recorrer a um outro tom de voz (que me faz desgostar ainda mais de mim), repetindo que eu sou-reajo-funciono de maneira diferente, sendo coagida a provar a intensidade desse sofrimento energicamente, porque verbalizar não era o bastante.
agora, não confio no meu julgamento sobre confiar.
agora, não confio nas evidências que produzem o que sinto ou penso.
percebo que sou aceita na teoria - enquanto minha condição for um rótulo e não um funcionamento. aceita enquanto eu for capaz de responder como típica.
agora, acredito que o amor é um privilégio guardado apenas para os outros.

no fim,
escondi os objetos pontiagudos, molhei a cabeça no banho, voltei a sentar aqui -- mas ainda não há nada.
apenas a experiência-base de esvaziamento radical sobre a qual se erguem as demais.
sim, estou medicada. peso, trôpega, lentificada, os olhos reviram ao mudar de foco.
logo mais, eu durmo. e quando despretensiosamente despertar, o horror me atinge nos primeiros segundos, um baque surdo. será noite e o escuro torna o luto mais enclausurado. 
é quando você estará do outro lado da cidade montando seu show, exalando bom humor e satisfação, cruzando olhares com uma mulher aparentemente equilibrada.
enquanto eu exumo esse corpo que você deixou pra trás porque supostamente não atende aos seus requisitos. e que infelizmente ainda guarda, zelosamente, os resquícios das tuas digitais. espirais cristalizadas.
e o amanhã do amanhã ainda será horrível. não há absolutamente nenhuma outra medida ou recomendação a não ser tolerar o intolerável até que a aversividade amenize.
me ordeno: mas nem um esboço de sorriso social mancha meu rosto. e não sei fingir que está tudo como mandam as boas normas. mas você, como a maioria, é exímio em demonstrar energia e disponibilidade. você ainda não conhece o quão fundo o horror pode te atingir a ponto de extinguir tua habilidade de transitar entre os seus.
a suprema traição é que pra você a realidade permanece em equilíbrio. você não perdeu seu referencial -- apenas abriu mão de algo pontual. um adendo, um anexo, coisa à parte, extirpável.
pela manhã me percebo uma peça deslocada. nada disso é real. há uma sensação de distanciamento, eu como observadora dessa pobre coitada que se arrasta pelo palco roto com a boca mastigada cheia de cuspe e sangue. a dor guardada dentro de uma caixa.
mas quando a noite desaba, o coração disparado me avisa antes que eu saiba literalmente que todas as certezas seguras e seguranças certas estão suspensas, enforcadas elas todas.
milhares de conjecturas me atropelam rente crânio, e eu fico esperando um sinal seu. o que eu sei de concreto é que, do outro lado da linha, não há qualquer resquício de embargo na sua voz.
achei que eu estivesse velha demais pra chorar por alguém ouvindo Adriana, ou que o próximo coração partido seria mais manejável.
lembrei agora que você reclamou do meu esmaecimento; por eu ter me tornado uma voz rouca e fraca ante à sua. por eu ter me encolhido conforme sua sombra se projetava. 

eu realmente quase pedi perdão por estar ferida. por não sangrar como te apetece. por não te entreter com meus improvisos trágicos. por não sorrir quando sutilmente exigido, e não manter a calma e o discurso diplomático quando as intempéries te diziam respeito.
por sustentar que sim, as luzes a gás escureceram por um instante. entenda como quiser.

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