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Mostrando postagens de janeiro, 2020

qualia

Um aquário? Uma jaula modernizada, com vistas a ser mais degradante?  Uma espécie de globo de neve, como nos filmes românticos meia-boca? Uma campânula que não floresce na primavera e em nada guarda semelhanças com o verde? Depois de muito questionar em mudo, epifanei que não importava. Era de uma superfície fria e rija, cujo som dos meus arranhões contra o vidro e mesmo os berros não chegavam à atmosfera externa; havia sido encerrada à vácuo, e qualquer grunhido morria antes da úvula, não propagável, não aterrisável no lá-fora - a poucos centímetros e imensuravelmente longíquo. espalmava as mãos contra o espelho sem sujeito e observava as digitais ali sumindo contra o ar rarefeito. nada ali era deliberadamente afiado ou pontiagudo, e mesmo assim, instrumentalizado para tortura. E doía aos ecos - cacofônicos  e egoístas, viventes apenas em si mesmos.  Aquilo o que quer que eu tentasse ser - não saía Como se dopada me houvessem posto numa bandeja. Espelho pl...

schize

me acho por ocaso no à-parte nesse a-mais, um mais-que-demais,  o entre-meio é desconhecido cheio de saudade e quando minha voz desata das cordas  é sempre em nome da cisão  economia nômade: trânsito exclusivo em pólos não tenho poder sobre os caminhos, e pouco os vislumbro até me voltar ao lugar-tal - que escapa de ser lugar-nenhum pela familiaridade   de extremos trágicos e particulares - onde a vaidade do espaço se confunde e exalta essa minha voz sob tom que surra ainda que sussurre (estrangulada por todas as palavras aprendidas na calma, claro) “pode gritar  e como não? deve gritar” e antes do rosto se romper num abismo de boca: “que grite com os nós dos dedos e com os olhos de esponja ciana  e com o metafísico das lâminas opacas  quando a ferrugem precede o ferro e brutalize - porque há quem só mereça a fúria  e a carranca de todo teu medo que, expansivo e valoroso, mascarado de ira pede súditos  es...

QUEM VOCÊ PENSA QUE É

como, mas como você poderia entender o que são esses tais afetos relâmpagos   que tanto falo e tanto me castram - fugazes em sua potência de destruição  quando você discursa inconscientemente indiferente do alto da sua família mais ou menos estruturada e vária tendo em mãos suas oportunidades asseguradas por um estável poder aquisitivo  - a interrogação aqui é uma piada -   você pisa sobre possibilidades que se escancaram e ainda assim você tem a opção de recusá-las  e almeja mais sabendo que terá  pois mama com o choro e sem precisar construir o seio  porque há aquelas, querido, cujo seio materno foi mutilado e arrancado da boca que eternamente suga o ar -  quando ainda suculento como fruta madura  - proibido de seu destino de secar aquelas cujos próprios seios hoje são monopólio de rascunhos de homens  muito modernos e autossuficientes  de desculpas primas primeiras dos porquês ocos daquele mesmo homem que...

BABE

de fato você andava deliciosamente frágil. amolecia quando em meus braços, embora mantivesse uma postura rígida na maior parte do tempo. talvez se importasse muito com a opinião externa. mas notei que a situação piorava rapidamente, hora após hora. empalidecida e catatônica, você parou de interagir. agora eu entendia de forma concreta que amigos são uma rede de apoio inestimável, e que perdê-los, um a um e sucessivamente, como partem os pequenos animais de metabolismo veloz, havia sido devastador pra sua integridade. e agora você parecia descamar como um réptil delicado num aquário. mas eu me esforçava em te assistir; de todas as mulheres, você.  o amor mais que amor, fronteira de antagonismos arrebatadores, a urgência em te apertar em afago febril os membros finos, em arregalar teus olhos translúcidos, saltar teu sangue, teus pelos, teu grito.  abalado também, conhecera antes cada um dos falecidos. embora me esforçasse para não construir opiniões desrespe...

do pó ao pó

tínhamos mesmo esse acordo. mas quando os corpos começaram a cair, ninguém soube o que fazer. os que haviam assentido se dividiram em grupos; o mais numeroso era composto pelos incrédulos, cuja espinha se retorcia de medo.  eu ouvi boatos de que essas crianças não dormiam mais, e logo começaram também a adoecer.  os jornais sensacionalistas vendiam uma ideia de uma cidade amaldiçoada. seja como for, era fato que algo estava incontestavelmente fodido. disseram que pouco depois os outros viam os primeiros em seu estado deplorável de pós-morte; lá estavam eles aos pedaços, sujando de miolos os largos sofás da salas de estar.  a cidade ficou vazia com a partida brusca das famílias, mas nem mesmo isso dissolveu a epidemia declarada e nós viramos assunto mundial. uma tragédia anunciada. uma calamidade pública. onde as crianças deixaram de sorrir.  eu esperava rigorosamente minha vez como um cordeiro em direção ao precipício.  os padres nunca foram tão populares, e uma...