qualia

Um aquário? Uma jaula modernizada, com vistas a ser mais degradante? 

Uma espécie de globo de neve, como nos filmes românticos meia-boca?

Uma campânula que não floresce na primavera e em nada guarda semelhanças com o verde?


Depois de muito questionar em mudo, epifanei que não importava. Era de uma superfície fria e rija, cujo som dos meus arranhões contra o vidro e mesmo os berros não chegavam à atmosfera externa; havia sido encerrada à vácuo, e qualquer grunhido morria antes da úvula, não propagável, não aterrisável no lá-fora - a poucos centímetros e imensuravelmente longíquo. espalmava as mãos contra o espelho sem sujeito e observava as digitais ali sumindo contra o ar rarefeito.

nada ali era deliberadamente afiado ou pontiagudo, e mesmo assim, instrumentalizado para tortura. E doía aos ecos - cacofônicos  e egoístas, viventes apenas em si mesmos. 

Aquilo o que quer que eu tentasse ser - não saía


Como se dopada me houvessem posto numa bandeja. Espelho plano sem reflexo. Acústico. 


Um ovo de vidro - caráter transitório, de quem se espeta num vértice e dali não se retira mais; a campânula me circunscrevia inteira, na dó maior de assistir quem ou o que fosse - na desgraça comum de tudo aquilo que é transparente, mas não palpável. 


E em geral, corriam as pessoas.


Sob as luzes artificiais atordoantes e o sobe e desce do sol. Nenhuma estrela às claras vistas, no entanto. Conhecidos ou não passavam na pressa estrutural com seus celulares acesos, seus livros semicerrados, seus olhos apontando o horizonte sem reboco. E falavam, como falavam - aquelas palavras que perdiam significado tamanha repetição, até que as sílabas se almagamassem e toda história mofasse nos ouvidos.

Esses ouvidos, coisa tão à parte, entupidos e minimizados pelas bocas as bocas as bocas -

sobrancelhas pouco arqueadas. mas os cabelos penteados no lugar, puxados pra trás ou escorridos, emoldurando rostos concretados num sorriso social. vez ou outra alguém se prendia no vértice por uns minutos, ou o que parecia ser horas (dentro do aquário não havia ponteiros, e se houvessem tenho certeza que não dançariam sua valsa habitual), mas logo desatolavam seus pés de pano e seguiam, restituindo a cidade de sorrisos. e como tudo que se repete, se perdiam no conceito, e grotescos se curvavam pelas bordas como costuras amadoras e mal feitas.


Gostava de observar, meio resoluta e constrangida, os casais que se agarravam ao artificial meio-dia; escambavam aquelas carícias que me faziam secar a boca, no ambiente insólito e abafado, cujo trato me acumulava à toa o suor. Ansiava. Mas logo as carícias se tornavam apertos estrangulados desembocando num sexo animalesco, fisiológico, naturalista; fendas cujo trânsito era caótico e sempre o mesmo. entra e sai, entra e deixa. e aquele que invadia partia, e aquele que hospedava partia um pouco depois. e buscavam, espiando as fendas e as lacunas carentes, disponíveis. entra e sai, entra e deixa. Isso eu não gostava de ver, e voltava as costas, abraçando os joelhos ardidos.


Os casais, os trios, as orgias ardiam também, no lá-fora; e quando abandonavam seus postos era de vez. E aquela caça incessante por pernoites, sem nome ou anedotas, sem construir refúgios e compartilhamentos, me endoidecia os ímpetos já doentes. Minha mecânica de fluidos era talvez bizarra demais, exigente demais. Então - a culpa. Por que não investir no básico, no confortável, na breve estadia? Por que esse almiscarado vertendo dos órgãos pedindo sempre pelo ininteligível, pressionando e sufocando, pesando quase no nunca?


Por que não a vitória no ordinário? O excepcional e tão almejado ordinário?


Acontece que eu notava - existia sempre um “você” oculto, quer passasse um bocado com as quimeras e com os paliativos. Todo mundo - e todo mundo mesmo - trazia “você” no plural. E volta e meia eu reparava, nos casais nos trios e nas orgias, um olhar ausente invocando aquele agente em particular. E ainda que socasse narcisista aquela desonestidade com o presente, a fantasia que eu nutria de unicidade e perdura resignava na realidade. E assim existia uma genealogia - se comia aquele e àqueles a quem o aquele no aqui já havia devorado e ainda devoraria.


Porque é impossível estagnar.

É utopia o uno. 

E todos existem antes e depois, antes e depois antes e depois -


Traçava fluxogramas com os dedos injustos; dentro do aquário, porta-retratos antiquíssimos que evitava encarar. As louças que não conseguia levantar e lavar. O banheiro seco. O recôndito de lençóis mornos que deviam ser trocados. Um espelho estilhaçado. Montes de cabelo rolando, sangue coagulado envelhecendo. Uma bíblia perfurada de - traças gigantes? Um vestido oitocentista de noiva, gasto de barro escuro nas rendas inferiores, um camafeu pendendo da gola.


Eles disseram “vem”.

Vem” -


E eu acertava a testa contra o vidro grosso. Uma. Duas. Três. Tonta, me afastava e contemplava-o intacto, a não ser por uma mancha irregular carmim. Pulsando derrapava quente entre o meio dos olhos. E era assim a comunicação, o travessão carmíneo e a voz fosca, encarcerada, girando num tambor imaginário quase pronto. Quase lá.


Eu sempre morava nesse quase-lá.


Penumbra e as caras se recurvavam, com toda aquela olheira coletiva, vertendo saliva das bocas esticadas, um coro faminto. Olhavam mais que só olhavam, capazes apenas eles de atravessar a cela, eu sei eu sei. Por onde?, mas por onde?, e mesmo o bonito que constava como obra do Deus não se desenrolava até meu domo.


Um jazigo sem homenagem o qual constaria, se possível, “nem tente”. Pensava se era assim o limbo entre o morrer e o ter de prosseguir pagando contas nos prazos e se mutilando nos papéis sociais predatórios. Talvez todos os mortos se debatessem lá embaixo até que todo olho e toda mucosa fosse nutrida pelos helmintos. Talvez eu fosse aquilo que sobrara do banquete, consciente até que as décadas fizessem direito seu trabalho.


A única instituição que não se corrompia era esse tempo. Embora em qualquer aqui e acolá meus fosse distorcido e aleijado.


Não dormia. Vez ou outra toc-toc no vidro.

Era ele outra vez. Um rosto embaçado como nos espelhos - um senhor de meia idade, corpulento e alto, cujos olhos eram a única parte nítida. Genético ao extremo. Ele sorria com a mesma diastema e o canino direito fino. Até que o encontro repetisse o costumeiro fim: as pupilas tomando conta, eclipsando totalmente a íris.


E então meus próprios olhos respondiam como reflexo imediato, queimando abjetos, arregalando a ponto de explodirem rolando fora das órbitas. Eu corria aos cacos do espelho, tateando enquanto a vista se tornava esbranquiçada.


Tudo vencido por sombras pálidas.

Toda a esclera de um azul brando e opaco.


Já ouvira que os gases e os espasmos musculares de cadáveres continuavam em plena atividade, movendo-os discretamente até mesmo um ano depois do ocorrido.


Meu braço então rompia o processo, e semi-flácido, encontrava meus cílios secos e enfim cerrava as pálpebras como se forçam as portas emperradas.

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