natal
aqueles cujo privilégio de esquecer resiste
dormem muito antes das costas ganharem o desenho dos lençóis
ora revirando-se ora paralisadas
pela incapacidade de expulsar das escleras esses fiapos vermelhos
dolorosamente invadidos pelos precoces raios do sol que anunciam a orfandade dos poderes básicos.
e esse intitulado renascer pesa insatisfeito sobre as pálpebras
e sobre as mãos que abanam solitárias e ignorantes até mesmo uma da outra
as horas se acumulam vorazes e essa anedonia -
as pessoas transitam e murmuram sílabas desconexas e essa anedonia -
os olhos sonham cerrarem enfim na leve violácea filha do continuum do choro mas essa anedonia -
um choro secreto cujo som suprimido não permite consolo
e os lenços parecem demasiados ridículos pra todo esse volume
e a maldita anedonia
de abraçar os joelhos enquanto se movem as festividades com suas insuportáveis luzes próprias
e não pertencer à qualquer alegria coletiva
pois a anedonia - suspensa
causa dos pés que não encontram suporte no chão e da carne, um túmulo acidental
aqueles que possuem o privilégio de esquecer
são os que se abatem por horas limitadas
agraciados pelo que chamam de dor coerente
e dentro dos números encontram o conforto da desintoxicação
uma vez que a memória não compreende também todos os cheiros e a frequência exata das derradeiras palavras
nem o retorno inevitável das ideias planejadas juntas que morrem agora sozinhas
e com elas o padecer concomitante de alguma instância sua
as lembranças são acasos esparsos insípidos de existência tolerável.
outra vez se levanta a nunca interdita vontade
e agora que as juras cadaverizam-se o intenso apelo pelo progresso faz sentido de novo e de novo
então o ritmo do trabalho se arraiga
as leituras não são mais atrapalhadas por um rosto esfumaçado
- e na verdade os traços dele perdem nitidez e precisão e o alívio disso -
as piadas brotam espontâneas e o riso escapa sem evanescer pela metade
você passeia entre outros pólos e percebe que deseja ficar. pode ficar novamente...
os rostos parecem cada vez mais interessantes e ser tocado é inevitável
dedos de outras texturas abandonam digitais que não encontram a repulsa completa dessa pele -
não mais terrivelmente apaixonada
algum calor nu em especial conquista as lacunas do teus dias
e umas íris remanescem deslizando frente às tuas embriagadas de sono
e de um tal canto ignorado da cidade,
onde as buzinas as nuances e as rotinas não chegam íntegras,
um silvo crônico rima teu nome
e rima teu nome, e rima,
sem opção a não ser inalar a mortandade dessa prosódia
o que a doença faz com as fronteiras do amor
e como ela torna os sucessivos passos em busca de outros sítios uma traição suprema
e como nada dessa agonia é compreendida por sua natureza aberrante e criminalizável
e como não resta nada mais além de odiar com ferocidade os afetos mais profundos que,
ainda que benevolentes,
não são isentos de padrões de desespero e nostalgia nauseante
e não haver a quem culpar senão a si pela dor - a dor que nunca dorme
isso sim, e jamais nada além,
é o espetáculo burlesco de tortura
que reside na obrigação moral de manter-se consciente.