do pó ao pó
tínhamos mesmo esse acordo.
mas quando os corpos começaram a cair, ninguém soube o que fazer.
os que haviam assentido se dividiram em grupos; o mais numeroso era composto pelos incrédulos, cuja espinha se retorcia de medo.
eu ouvi boatos de que essas crianças não dormiam mais, e logo começaram também a adoecer.
os jornais sensacionalistas vendiam uma ideia de uma cidade amaldiçoada. seja como for, era fato que algo estava incontestavelmente fodido.
disseram que pouco depois os outros viam os primeiros em seu estado deplorável de pós-morte; lá estavam eles aos pedaços, sujando de miolos os largos sofás da salas de estar.
a cidade ficou vazia com a partida brusca das famílias, mas nem mesmo isso dissolveu a epidemia declarada e nós viramos assunto mundial.
uma tragédia anunciada. uma calamidade pública. onde as crianças deixaram de sorrir.
eu esperava rigorosamente minha vez como um cordeiro em direção ao precipício.
os padres nunca foram tão populares, e uma guerra ideológica entre as instruções clericais e a posição psiquiátrica se instaurou.
enquanto isso discutiam sobre velórios coletivos e os restos passaram a ser cremados na esperança de purificar o espírito daqueles cujas razões eram conversas de comadres.
as praças e os bares vazios aos fins de semana e os dias mal eram contados.
os mais supersticiosos olhavam com desconfiança até mesmo a água encanada e a hipótese de um vírus circulava pelas bocas comuns.
todos andavam acompanhados e um toque de recolher foi implementado.
o terraço dos edifícios foi interditado e puseram guardas nas escadas de acesso.
então a caça começou.
havia uma outra Salém no século XXI naquele interiorzinho outrora pacato do Nordeste.
autoridades federais assumiram a frente e, inspirados pelo maniqueísmo conservador, passaram a interrogar suspeitos, e quem quer que parecesse capaz de exercer influência sobre os desejos alheios era um potencial responsável. falavam aos moldes de bruxaria e seitas, e mesmo psicólogos e escritores foram levados.
e muitos não tornaram às suas casas.
os históricos de pesquisa online foram vasculhados, bem como perfis pessoais; livros foram censurados e o catálogo de filmes se apequenou. os postos de saúde ministravam ansiolíticos mesmo para quem não apresentava histórico.
acontece que tudo só piorou.
e quando as vítimas foram também trabalhadores, gente de fora chegou para intervir.
a cidade foi dissecada ainda viva.
e eis que um grande cartel de tráfico de órgãos foi descoberto.
caixões vazios, covas violadas - mesmo a cinzas eram só pele e osso.
a epidemia movimentava o comércio e o prefeito evaporara-se.
mas isso ainda não era a causa e não explicava porque até mesmo as lixas de unha eram agora escondidas.
e então parte das crianças era assídua na igreja, e muitas receberam diagnósticos de graves transtornos psiquiátricos em apenas uma ou duas sessões. e a indústria farmacêutica muito se amigava daquele sertão um dia ignorado.
a creche principal foi a júri popular e, os reverendos foragidos, barrados na fronteira do estado depois que pilhas de gravações em vídeo foram encontradas guardadas no banco - desde fitas VHS a pen drives.
e as fantasmagóricas visões dos sobreviventes do pacto revelaram ser não apenas daqueles destroços orgânicos um dia batizados, como também de homens de meia-idade cuja batina não cobria os membros viris.
a cidade foi esvaziada quando os cemitérios já não tinham capacidade de suportar mais memória.
e antes do juízo final seis crianças se explodiram levando junto a construção gótica da igreja.