venho esquecida
de mim enquanto a flux,
venho esquecida 

restam, para me guiar, apenas
contos populares, demasiadamente orais –
com seus deslizes
interrupções 
e vícios de linguagem –
daqueles que tangente riscaram, 
daqueles que evadiram, aos apressados tropeços,
do horizonte decrépito e ermo,
da terra arrasada por uma guerra particular.

os papéis de parede outrora delicados
jazem descascados entre
perfurações na alvenaria 
de socos e chutes de quem
quer ardentemente romper o acordo com a realidade
e obliterar as trincheiras que construíram o presente.
pequeninos feixes paralelos na estrutura, 
são filhos de unhas roídas 
gritando ao material alguma tirania do hábito.
espelhos estilhaçados propositalmente,
cujas molduras se mantêm 
intactas. e suspensas 
e as provas de vidro que não foram recolhidas,
testemunhas do que se sucede
ao pronunciar três vezes o próprio nome
mediante reflexo.

não havia como ver a mim. 
em verdadeira forma,
despida à expiação.
não havia como encontrar a mim
senão entre o que
também carece ser varrido.

vozes familiares vozes
fora da cabeça mas esmagando o crânio 
entre as garras
até o soturno som daquilo que principia a rachar
vozes familiares vozes 
fora da cabeça mas pondo ovos por todo o espaço
entre as orelhas 
descrevem uma besta patética, 
equívoco divino, mas também da natureza,
um feto inviável – inconcebível é como vingou
e foi pelo corpo expulso
com uma maldição nos genes 
que lhe roubou a derme
quitando dívidas, pagando pela morte 
através do que não será vida.
e exsudato. e sangue demente.

os termos se afilam,
amantes de histórias coloniais
que permanecem, no cerne, as mesmas
pois é vitalício certo imaginário.
os termos se afilam pois
intentam conquistar o público livres de sanções.
legitimados pela sua polidez 
(como se faz com o aço)
eles ainda corroem 
a substância mais resistente do planeta:
uma mulher a quem se faz sangrar
continuamente.

ela que se regenera a esmo,
inventando vida onde não se sustenta,
crescendo célula onde não se devia haver,
deformada pelas bocas
e seus beijos secos que se seguem a mordidas
empenhadas que se seguem
a beijos ainda mais secos e depois escarros profundos
e cuspidas espessas.
nômade assim da autobiografia.
vândala de si
que aprende a usar a própria boca 
de igual forma.

existo unicamente como 
a palavra alheia profere.
esquartejada até liquefeita atravessar
uma peneira.

içada um quase cadáver na despensa.
baloiçando aqui e acolá 
um joão bobo
ao bel prazer de uma lufada de ar
ao fel prazer de um outro
e mais um outro 
sujeito sem nome.

emito as falas de quem brame a espada
como o que é por uma entidade obscurecido.
inauguro os céus com o chicote,
mas também abro as costas a favor dele.
me regozijo sadicamente enquanto carrasco,
e marejo olhos na dor que incendeia, 
enquanto qualquer réu indigente.

mas ainda treme e sua
a mão que sustenta o peso 
do chicote.

venho esquecida de quem eu –
a lembrança é vaga, e vaga
rarefeita e imprecisa 
por entre as celas do cérebro
e os quartos periféricos do que sobrevive 
do corpo.

mas há uma única conjugação, 
específica e imune
ao desvanecer da memória;
primeira pessoa do singular do futuro do pretérito.
– quem eu seria

caso jamais lembrasse 
dos mitos sobre uma insanidade
particularmente feminina 
curiosamente conveniente àqueles 
que a utilizam como premissa.

caso jamais lembrasse 
dos mitos sobre como deve uma mulher
deitar-se sobre uma cama de espinhos,
vestir-se de vermelho para disfarçar quando jorra 
amar homens que acariciam seus pescoços
com adagas
oferecer seus olhos e bocas e sexo
como um sacrifício prudente.

venho esquecida,
dissociando em espiral,
tranquilizando a mim de que não sou real,
porque a tarefa de ser
é entrega de um serviço, quiçá um produto,
coisa pronta forjada 
a ser avaliada e aprovada,
que nunca atravessa a alfândega e retorna
para ajustes.

assim venho lembrar a mim que
aquilo que do escárnio nasce
não há como voltar à vida

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