Armillaria ostoyae
I
não entendi até que a delegada disse,
o sutil não é pequeno,
mas é aquilo que reitera-se
bem camuflado.
e se estende
discretamente
desapercebido
subestimado
como os micélios de um
cogumelo-do-mel.
foi preciso, logo a mim,
uma veterana, decompor
e operacionalizar
o que era violência
é assim que se aniquila alguém
sob o sol do meio dia,
em meio à multidão,
e ainda se ganha
um tapinha nas costas
e coxas abertas sedentas
em self service.
II
no início, sempre reluz.
um efeito tão estroboscópico que
cega.
e por cegar se ignora sinais, como vermes
microscópicos fazendo
o que nasceram pra fazer.
ser posse às vezes parece
que também se está fazendo
o que se nasceu pra fazer
acumula-se absurdos até que
a metástase deles
define o cotidiano.
e então
o estado de desorientação crônica
feito pano de fundo do dia mais ordinário,
uma nova natureza.
sim,
eu me deixei ser inventada
à tua imagem.
te nomeei o maestro
dos meus órgãos.
te assumi como medida de todas as coisas,
o modelo de humano. o amor
parecia um serviço criado para responder
especificamente a ti.
o meu corpo, como um gato arqueado,
sibilou nos primeiros contatos;
reconhecendo algo de ameaça.
mas há uma lábia específica dos predadores
– e uma disposição para o risco que só
as mulheres destroçadas exibem –
então, persuadido, concedeu a invasão.
entendeu ser colonizado como ônus necessário para ser desejado.
resignou e aceitou o domínio –
até que passou a implorar por ele.
só então teu trabalho estava feito.
tornou-se inerente
não entender o que houve
que fez desse presente possível.
não ser capaz de identificar o que sinto
em nomes convencionados.
olhar o mundo com total estranheza;
desconhecer a humanidade em cada um.
não saber como chegou a esse ponto.
não ter mais meios de elaborar uma narrativa coesa
– para dizer que foi assim, de tal jeito,
quando isso, que gerou aquilo, então eis-me aqui.
sacudida de um extremo a outro,
inteiramente à mercê da vontade alheia,
o que quer que eu fosse adotou
origem em você, e você
ditava as condições de existência.
e então o conflito de ainda resistir
algo de mim ali no fundo,
acorrentado aos açoites,
coitado. não duraria,
era preciso ser obliterado.
minha vida,
entenda,
a minha vida se revelou uma extensão tua.
caso escapasse às tuas vistas,
eu desaparecia do mapa.
ficava em algum limbo esperando nascer de novo.
o conceito de felicidade era agora
o alívio fantasiado –
por ser olhada só um pouco demoradamente,
chamada pelo meu nome
que você me deu.
III
você foi cuidadoso
para que não parecesse tão imoral.
para que as consequências sobre você fossem mais brandas.
tinha sempre disponível um argumento que me responsabilizava pelo mal-estar,
conduzindo a situação pra que eu defendesse
que era eu a necessitar de mudança,
já que o imbróglio residia em mim.
partiu quando eu não tinha mais tônus
para me pôr de pé a te aplaudir.
então escolheu outra, no cardápio,
ingênua o bastante para te admirar,
e assim você recuperar seu autoconceito e suas regalias.
(você precisa que ela te balbucie
o que você conta sobre si mesmo
para que pareça verdade)
mas tinha esse tal cuidado de me manter disponível,
à espera, em ansiosa expectativa,
ao dizer que era um simples mal entendido e que
me amava em todas as línguas
– enquanto, no contraturno, usava as mesmas línguas para
fazer gozar outras.
e me beijava com o gosto
do prazer delas
na sua boca
até que eu fiquei transparente,
e era possível te enxergar do outro lado.
você voltou a me buscar
unicamente porque eu escancarei a boca o bastante
– ainda que me rasgasse os cantos –
para que soubessem do que você é feito.
e você se tingiu de medo dos danos sociais.
de perder o prestígio, a pose, a boa fama.
de afastar seus alvos,
de impedir seu sexo.
o que você quer é
uma mulher domesticável
que preencha os requisitos para te servir.
e então você só reproduz as mesmas performances decoradas.
induz que adotemos a sua mesma noção de amor.
ela precisa se contentar com o mínimo. ela precisa te achar incrível.
ela precisa ter tido uma vida tão miserável a ponto
de considerar o que você tem a oferecer como ideal.
seguindo o script, calunia aquelas que te amaram
para assim ocultar os próprios erros atrás de estereótipos misóginos.
e ainda que isso nela inflame uma bandeira vermelha,
estar contigo é aprender a morar numa estrutura em chamas.
você aprendeu a mentir compulsivamente porque precisava ser proficiente o bastante nisso
para convencer a si mesmo de que é um cara valoroso.
e de que toda vez que você agrediu uma mulher,
foi porque "errou a mão".
você desarranja memórias e sanidade femininas de forma tão exímia,
como houvesse treinado junto à língua materna.
parece mesmo não ser possível que você esteja errado.
quando você fere uma mulher,
é um evento perdoável em via dos seus traços de impulsividade patológica,
ou até mesmo o punhal foi por ela alucinado.
você planeja que revidemos,
quando já nos são escassas outras estratégias de como reagir
quando beira o ridículo aquilo que você nos transformou,
para que nisso você se resguarde social e juridicamente:
olho por olho – tal qual estivéssemos quites.
você incrementa esse projeto de despersonalizar,
de corromper nossa noção de si,
de induzir dissociação, de conduzir a terrenos limítrofes,
porque assim é mais verossímil quando você alegar
que enlouquecemos,
e que por isso nada que digamos é inteligível.
você reclamou injustiça por cada uma das minhas palavras sinceras.
e me incutiu culpa por reconhecer nitidamente o quanto você pode ser violento.
nunca foi sobre não o ser, mas sim sobre não ser sabido pelos outros.
era um segredo que deveria morrer comigo.
e o quanto antes.
e quando em público eu explodia
você se afastava a desviar dos estilhaços
logo após trazer uma expressão facial de surpresa e recriminação –
e me deixava ali como quem diz "ela está enlouquecendo sozinha",
cuidando para que ninguém notasse o que você fazia.
você iniciava o incêndio e deixava que tudo queimasse solitário.
todas as vezes que te aceitei de volta
você contrariava a própria lógica,
e minha mais que compreensível insegurança
era tomada por você como ausência de esforço o bastante
para ser de novo sua companheira.
eu devia esquecer, passar por cima. tratar como assunto morto.
mesmo evidenciar seus comportamentos mais questionáveis
era “desrespeito”.
curiosamente, você só “largou o osso”
no dia seguinte ao que te mostrei
que a violência psicológica está prevista em lei.
e só então eu realizei
que todas as vezes que você voltou para mim
foi porque sabia que meu colo
era um asilo seguro e disponível
em que você poderia descansar por um minuto
e suprir suas necessidades fisiológicas
para tão logo tornar a ser fiel
à sua atividade vital de caça
que te caracteriza, ainda que você
nunca admita,
como um predador.
sim, elas
precisam se odiar a ponto
de acreditar que amar você
é a solução para isso
sim, elas
precisam se culpar o suficiente
por serem terríveis terríveis parceiras
porque não se anularam tanto para caber
no seu ideal
mas a verdade é que te amar
é uma escalada íngreme
até um lugar insólito
onde fazem morada improvisada
as mulheres rarefeitas
de si mesmas
para que quando você as aniquilar
sob o sol do meio dia,
em meio à multidão,
ainda ganhe
um tapinha nas costas
e coxas abertas sedentas
em self service