adivinhar

É agora. Eu posso. Como não?

Eu poderia me jogar na frente desse classic frenético, romantizar os faróis como anjos, como li uma vez - só que não é a droga que me motiva, digo, não sou coagida pela alucinação. É minha decisão, meu ultimato. 

Não me importaria, ou melhor, não me ocorreria a preocupação de onde pararia esse naco desfalecido, talvez esquartejado, ralado do calçamento. 

É agora. Eu posso apenas fechar os olhos e ir. Não é preciso saber viver, nem currículo exemplar - as aulas, os testes, as oficinas, os certificados. Não é preciso preocupar com o jantar. Não é preciso a saudade. O horário. A desculpa pro atraso - chorei diante da camisa que encontrei por descuido entre os cabides. O sorriso simulado, engilhando a cara. A avaliação baixa no trabalho porque não mantenho relações fluidas com os demais colegas. A família corrupta. É só ir, uns passos. Talvez dois, três longos. E não ouvir as buzinas, e não arregalar os olhos tementes diante do interno mais claro da pálpebra. E mais claro, e mais claro.

É claro que talvez doa mas passa antes de chegar o dia. Vá veemente. Diga que pode só por hoje. Um dia pela última vez. E nada será mais honesto. Ou mais gratificante. Nada será mais você.

Esses anos, você tem postergado, o que isso te trouxe? Eu estou lá quando você penteia o cabelo a portas fechadas porque não quer que ninguém saiba os tufos entre seus dedos, eu estou lá quando suas manias não te deixam sair de casa ou quando a compulsão fere teus joelhos no azulejo do banheiro frente à privada. Eu sou saindo quente e ácida do tão-fundo que você confunde as nomenclaturas. Eu estava lá na primeira pílula "só por um tempinho" e continuo aqui, milhares delas depois. Chorei as mentiras que você comprou pra não chorar. E quando você descobriu o que não era amor, não havia nada além de mim. Então vá. Desapega dessa carne seca que você insiste em fiar, isso nunca te trouxe nada relevante.

Deixo os carros passarem, chances, um a um, uma dezena de "definitivamente", mas se não tem nada mesmo por que é tão trabalhoso? As memórias, os fardos, teus olhos? É isso que me mantém no meio fio - abre e fecha semáforo, atração dos transeuntes? Não, tem algo maior que ele, mas o que pode ser maior que ele? Esse processo da pieguice é preguiçoso: depois de infectar se arrasta, metástase. Continuo esperando, continuo esperando a rua. Continuo esperando um sinal, um empurrão qualquer, esperando que o tráfego me odeie demais e termine de me acabar, avance os pares, me acerte de supetão, me pegue prevenida, dispensando os adeuses e a progressão do acontecido - eu lá quero saber da rapidez do oblívio, da facilidade da substituição, das marcas que eu não soube deixar porque tinha um de-dentro movido a apelo. E isso de melhorar é um trabalho dos que continuariam o trajeto. Atravessariam a rua. Voltariam à discórdia pra tratá-la com carinho. Uma última tentativa a mais. 

Mas meus pés 38 feios, chatos, unhas secretamente não escovadas, paralelos. Manchas pretas de hesitação e ansiedade. Por que só ir não é só ir? Por que esse ir é mais que um processo uma decisão um instante um impulso, por que mesmo a dor - o que mais há - não supera, por que esse deus do depois me parece agora tão cristão e me evoca a danação eterna, por que me importa até mesmo o esforço do responsável por recolher meus retalhos flácidos, minha espinha bamba, esse próprio pro despejo, aterro de pele oliva? 

Uns pés que nunca vão ao devido. Essa é ou seria a única decisão inteiramente minha, talvez o propósito seja lembrar que não existe um, ou talvez isso seja um propósito: há pessoas que não são pra ser.

Ontem fui ao psiquiatra e ele me achou bem. É inerente fingir. Mais ainda ignorar. Pular os indícios, comer as entrelinhas. Meus olhos tremiam quando eu sorri, eu tenho certeza que ele notou essa dança fúlvia das pupilas, eu tenho certeza que tantos o fazem, mas é isso. Você não tem que reparar. Eu não posso dar nada e agora me tranquilizo nessa dádiva de não ter de encontrar solução. Não tenho de tentar. A dor é fácil. Dói, e fere e mata, e dói mais e mói e fere e fica nesse morre-não-morre, mas é fácil. É só doer.

Então por que não apenas avançar e deixar que a física comprove o mundo? Por que eu tenho de revisitar a antologia de histórias que fincaram meus pés na borda da avenida, convencendo-os a nunca chegar ao outro polo? Por que eu ainda preciso lembrar que os porquês são válidos? 

Por que essa é a quarta vez nessa semana e mesmo assim agora voltei os calcanhares e as costas para os carros e seus anjos-lei da AMC, e segui o fluxo da bulevar como quem só pensa em seguir o fluxo da bulevar? Por que não antes e não hoje? Afinal são os mesmos dias, só os carros outros.

E amanhã eles, ferozes, ainda estarão aqui.
Conto que também eu.

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