blindsight
é difícil confessar clichê.
olha, vê essa gente compenetrada em si mesma, esperando o ônibus, balançando o maracujá no supermercado.
vê também os ícones redondinhos dos perfis anunciando uma estória válida, e sempre esse bom humor cibernético que me faz perceber o quão ranzinza eu dei de ser.
vê que essa interação é constante, fluida e natural. as relações seguras que se tem, cinco ou seis pessoas, mas equilibradas naquilo que é inquestionável. é quando o tempo continua tanto quanto os amores.
confiar... e ter razão nisso.
vê que os acidentes e as mágoas conseguem desbotar, algumas das novas conversas constroem outras permanências, as perguntas introdutórias disparam interessadíssimas (e não arranjo energia pra responder outra vez).
mais um processo dispendioso de quem-é-você e de parecer encantadora - que não passa de uma embalagem reluzente
é fácil ver ao redor essa certeza de si, de que se existe. a certeza de haver canto. sabe, certezas tão certas que não se destacam, não se percebem.
assim como você não pára em súbita consciência de que é um mamífero bípede, o são os elos de linguagem e afetos. a sensação base de pessoa humana depois de satisfeitas essas carências primárias. quando o quem-é-você é empilhado direitinho
vê que eu vejo isso também, e por isso me envolvo em atividades, atravesso da Seis Bocas ao Benfica com esperança nos traços divergentes, desvio dos ombros e me distraio com a impaciência generalizada, fico atenta aos prazos e rolo um feed ou outro. e também venho às telas com uma cara fajuta de quem não sua, não planeja morte por costume de cair no óbvio, não odeia aparecer porque não sabe o que mostrar. e não sei mesmo sobre as expectativas e as civilidades, às vezes eu me esgarço e sobe aquele sinalzinho de susto. “meio creepy quase gore”
mas em geral eu assisto.
só assisto.
ilhada num pedaço distante sem saber como fui parar ali; foi sempre assim? ou algum dia eu deixei o posto e consegui a vitória de me enfiar bem no meio das conversas, das promessas e das euforias...? de me manter no prumo das convivências
é uma impressão escura e enevoada, um vulto sem verbo, um comichão por trás de todo pensamento e à espreita das atividades, porque é tal qual uma própria estrutura. como radical inerente, não existe o não-ser disso, eu não conheço vez em que não esteve aqui servindo de chão pra qualquer movimento.
é isso que quer dizer pressuposto?
eu vou escrevendo porque me disseram e eu também li em um artigo que esse caça-palavras ajuda a assimilar decentemente e depois você pode deixar ir
e deixar ir sendo meu sonho
na maior parte da hora isso só salta como um flash tátil intrusivo, aí me sinto doer demais até quase passar pro outro lado
eu falo desse apartado, aquilo que sempre é fora, desde a primeira lembrança esse des-vínculo, a comunicação que se escassa e interrompe e a presença dormente dos espectros. eu não estive em outro caso senão nas periferias dos encontros, sem nem mesmo discernir que eu continuava acuada, mexendo nas coisas externas como se cutuca um bicho morto [aquela atenção amedrontada, o grito estacionado]. eu nem mesmo vi que os exageros consentidos eram porque eu não me admitia os cernes, os núcleos... e falava tanto das entranhas, imagina. agora eu continuo falando das entranhas, dessa vez sabendo como se parecem e que também elas continuam sozinhas.
porque na falta de termo melhor resta o clichê de que eu sou só. mas é coisa fixa, quase pré-histórica, que foi se modificando conforme eu crescia mas sem realmente minguar, apenas encurralando mais descrições (que mais traem que dizem)
como se eu fosse muito pequena e me perdesse da mãe. sabe, quando não parece que ela vai voltar. seu amor vai se expandindo diante da perda e da saudade, o minuto não conta. e não se concebe outra realidade senão a de nunca mais ser encontrada. as pessoas vão se acumulando ao redor e você continua sozinha, desorientada e sacudindo as mãos enquanto chora, sem alcançar o alto o bastante pra ser notada ao mesmo tempo com receio de estar sob as vistas. algumas vistas incidem através -
eu transito sim. eu acho que sorrio. não dou muito bom dia porque talvez não respondessem e eu murcharia. fico olhando, sabe, de soslaio, a arte de se encaixar nos outros. e do estar-sozinha ser não mais que aquele momento do dia, alívio cotidiano.
piora diante das possibilidades, observando as pessoas tão perto. porque não é o “sozinha” do desabitado, é pelo contrário. grave, gravíssimo. de quando o enxame de gente passeia em torno roçando em você e tuas mãos decepadas fizeram isso a elas mesmas pelo simples medo de poder segurar
eu continuo sem entender como é possível o outro.
como é possível ser acolhido macio de maneira a aquietar
e vê que por mais que me seja jurado, por mais que me venham com evidência, por mais que eu repita me implorando. e repita daquela forma quando a palavra repetida perde totalmente o conceito. que aí pra fazer jus ao clichê tenho até que adoçar a confissão - eu também passei direto por mim, eu também fui me estranhando, me desagradando dos reflexos. até essa outra espécie de cegueira cortical.