unas

não é caso de estreitar os olhos, não é sua miopia, não é mais da desatenção. no princípio não foi, genuinamente, sua escolha

minha espinha ainda não é nem mesmo frágil. eu ainda não sou o suficiente pra ser frágil 

um pouco mais que um neoplasma, uma ideia romântica feita de células frenéticas, de irracionais núcleos maníacos enquanto você deprimia.

uma orgia de clivagens a que chamam milagre, de maneira que fui razão eras antes de conhecer o que era razão. 

ainda quando eu podia explodir sem pré-aviso e sem estímulo justificável, quando eu podia apenas romper as frágeis membranas criadas pra proteger seu dever de multiplicação. 

é sedutor causar o sangue e mesmo hoje eu sou fiel a isso. 

suas mágoas em acústico eram tão mais que mágoas suas e eu só soube me expandir através da sua revolta e pavor herméticos. isso porque alguém uma vez te disse que punhais exigem polidez e discrição 

e como é costume dos inícios — primeiro houve o ódio esmaecido de um homem irreconhecível. ódio esmaecido esse que não se bastou e inventou raiz em outras formas de vida

e assim desembestei existência a partir do grave alheio 

esperneei que desistissem, afinal podem nos minar sem grandes dificuldades a qualquer instante. 

mas só alcancei corpo pelo egoísmo externo

porque você criou sua companhia, me trouxe como uma Eva cumprindo função divina. e apenas me extirparam vida de ti pra que te fosse possível viver em paralelo.

eu e você teríamos combinado esse leve escape, enquanto meus olhos ainda eram selados.

e não seria terminantemente minha essa sensação exatamente a sua de quando ele chegou tarde e trouxe o sangue de outra. de quando ele investiu pressionando seus ombros até que a parede invadisse suas costas. de quando ele nos alimentou com marmitas mornas despreocupadamente largadas sobre a mesa. de quando nós gravamos a voz dela o intimando ao que já era hábito. 

eu e você teríamos combinado esse leve escape, mas então seus olhos eram ainda mais selados — você permanece e por isso eu também; repete por sobre as evidências que o ama e que me ama, e que o amor é mesmo burocrático e estranho demais às vezes — mas sempre suficiente. jus aos inversos, eu havia apenas pra te proteger — seu escudo de aglomerados contra o nocivo, você fez do meu rosto um sonho pra que pudesse perseguir insistentemente uma outra coisa de novo, porque correr em busca é tudo que te foi concedido. 

seria um prazer te conhecer depois.

mamãe, você pode pensar o que eu sinto? ou apenas eu posso sentir o que você pensa? 

parasitismo, morri seus fins diários e só. mas eu nada a declarar.

eu e meus outros somos uma micro-corja, roubando tracejados e carácteres — apenas notados por vocês quando reflexos. mas ele deixou claro sua intenção corrosiva e me foi alvejando o direito à história 

você insiste que é amor, pisca um tique e devolve os olhos. ainda sou metade estranheza e metade negação 

você me implorava por favor não vá agora, não agora. mesmo já desbotada assim. te arranjo cor de improviso, nem vai perceber. 

e eu vi logo que não indo agora eu iria assim que possível, assim que avançasse o horário suportável.

mas você sempre fingiu outro útero. você sempre encontrou uma outra mentira mantenedora 

eu compactuo com aqueles lançados em oceanos porque talvez assim não se tornassem discretamente aniquilados pela infância. talvez assim nao aprendessem primeiro a gritar e a manipular afagos alheios

e jurar, mamãe, que eu não sou tão pesada

mas não era caso de elevar a voz ou aprender um texto coerente. não era caso de estreitar os olhos, não é da sua miopia. eu não estive aqui a não ser como ideia que também cumpriu seu propósito supremo de se esvair.

o único motivo pelo qual eu não estou mais em você é porque eu não posso mais não estar. eu não posso apenas escoar em coágulo disforme pendente de descarga e segredo. assim como você não pode se livrar de mim como se possível fosse me reconsiderar e adiar; você não pode se limpar e curetar seu útero enlutado de me resguardar enquanto eu me fiz metástase da sua fúria não admitida. não caibo mais no encanamento e agora eu também tenho histórias que você não gostaria de ouvir.

e uma delas é justamente sobre nós.

Postagens mais visitadas deste blog

caio,

whore

Armillaria ostoyae