[e jamais perguntaremos nada sobre o desejo]
às manhãs
mais urgentes que o pão —
poderiam ser confeitos e engulo como se confeitos fossem —
rompem o jejum esses
micro ruídos de ranhura.
e então depois do café
uma outra série de cores e design.
religiosamente às quartas,
também às manhãs, menos cedo,
encontramo-nos através dessa mesa
numa rotina inscrita há mais de mil dias
em que ainda não nos conhecemos
ele quer saber do meu corpo
como substrato fisiopatológico.
se durmo a noite inteira,
como tenho me alimentado
e os 30min diários de exercício físico,
gabriela,
2L de água por dia e as alergias?
ele é o homem dos ajustes,
desloca as engrenagens mais anteriores
sem qualquer toque
às quintas
imediatamente depois que se iniciam
espero que logo não mais sejam as quintas
e às sextas me arrependo de ter querido isso
quando eu compareço e ela me vem com
como você está hoje
nos dias que me restam
visito mais doutores pra acertar minhas entorses inatas
trata-se antes de uma cadeia de equívocos pré-zigótica
e cada problema desata acompanhado, ramificado em genealogia
um perfeito estado crônico de pane
nada existe fora da espreita do conserto
mas é a moral eufemista em que tudo o que se debate se justifica
calma você
vai ficar bem
não mamou o suficiente
tem esses desequilíbrios neuroquímicos
mas nós podemos
e nós vamos
te corrigir
“químicos”
como se eu inteira não fosse apenas um pouco mais que química básica
de repente a doença se tornou uma entidade
um à parte
mas, divergente a mim,
capaz de ter de si certeza.
o que tenho é o mandamento primeiro da dúvida
eu ainda não contei que as minhas opiniões podem não ser minhas
e que antes de me declarar crente ou sensível a algo tenho de
lidar com a potencialidade do drama, da manipulação e da volatilidade
eu nem sempre posso ser intencional
eu não apenas delibero e escolho pois
quaisquer incômodos correm risco de serem sugestões
ao invés de factíveis
o meu couro tem se atado à agulha
e na honestidade da inconsciência eu busco me aniquilar pelas beiradas
dormia com os olhos parados
quando mastiguei a língua até uma outra inflamação
e dolori arcada dentária pela fricção
eu tenho de dormir não como
animal de ciclo circadiano mas sim como
aquela que insone por mais de 48h tende a colidir com o chão dezenas de andares abaixo
mantenho distância das janelas por mais preciosas que aconteçam de ser as paisagens do alto
as facas estão sempre protegidas contra mim e mesmo as giletes se escafederam
e embora não recomendem as crises a seco
também não recomendam a benzodiazepina
e depois de alguns anos de uso contínuo
eu tenho falhas de memória
que, fazendo jus ao espetáculo da contradição,
mantêm intactas o que eu preciso esquecer
como se cultiva uma rede social segura e se conhece o carinho
através do pavor do contato?
e até mesmo sobre o sexo
eu evito refletir
porque até mesmo dentro da ideia do sexo
residem lesões
uma mulher de analgesias.
sem tato
sem sexo
sem gozo
me comeram meio viva e
e a invasão ao vazio eu achei que era assim mesmo que existia.
me fiz de quatro como um favor
me pus de lado como um dever
e simulei como agradecimento
ao fugaz olhar a mim com centelha de desejo
foi escambo esse corpo
meio-vivos também
erraram minhas intenções
erraram até mesmo meu nome
e eu fui a menina meio triste
das quartas, quintas e sextas
e qualquer dia que restasse
eu tinha 9 anos quando escrevi meu primeiro poema sobre solidão
eu tinha 9 anos quando fui ao psicólogo desenhar meus pequenos ódios
eu tinha 10 quando achei que bastavam notas e sonhos
eu me formaria
e me casaria
com um homem lindamente apaixonado
— tudo nos conformes
e compraria para minha mãe a casa que nunca tivemos
e provaria ser digna da presença do meu pai
e da afeição da família
aos 10 também me contaram sobre um lobo temporal um pouquinho diferente
mas podemos resolver
e vamos
você precisa assumir compromissos
desde então eu fui varios CID
contraindo as infecções das teorias alheias
me disseram que
acontece como uma doença
parece muito uma doença
mas não é uma doença,
mas uma personalidade
e o que deveria consolar na verdade se traduz como
há algo errado com quem você mais é
e talvez você não possa ser muito mais que isso
em algum momento eu parei
naquele contexto que parar é sinônimo de retroceder
e o curso alheio ganhou forma
eles se tornaram adultos com seus diplomas e empregos e dinheiro e família
eu deveria apenas segui-los
como a cadela que eu sou
e mimetizar essa existência
como o símio que também sou
mas eu preciso primeiro aprender
como engatinhar
e não
não me interessa mais
por quê eu
agora que sangrar é banal
o mal-estar não mais se alarda
e gosto da minha cara familiarmente arrebentada
entre tanto branco nunca me disseram nada sobre o desejo
por isso
as quartas e quintas e sextas
e todos os dias que me restarem
é conveniente
são os tempos
anda tudo meio louco
você consegue
cumpra as obrigações
e jamais perguntaremos nada sobre desejo
isso deve bastar