sensitiva, 2018

entre as cortinas, olhar vidrado,
um fantasma colonial --
esperava o carro dele estacionar logo ali embaixo
-- sim, no próximo minuto, ele --
assim o era religiosamente por eras
encontrando sua voz mesmo no vácuo
roendo as unhas, os pés se contorcendo,
apoiados um em cima do outro
-- sim, no próximo minuto, é ele --

numa estrutura que não se importava
em definir-se antimanicomial
apesar da Reforma,
isolada geograficamente para nos manter longe 
das vistas da população,
busquei resolução em algum outro fármaco
-- sim, afinal devia haver algo que --
mas ao me deparar com uma senhora amarrada
pedindo por favor por favor por água 
pari uma fúria irreconhecida
que julgaram em consenso como inapropriada
e entre gritos de uma menina,
que demorei a atribuir a mim,
cinco homens saltaram sobre meus membros 
a fim de imobilizá-los. 
-- não precisava tornar medo 
o que era só raiva --
como um animal arisco recolhido,
tinha consciência dos hematomas brotando 
alçada à maca enxergo, entre súplicas,
uma agulha cada vez mais perto
e não existia qualquer sensação de dor
física.

desperto em ambiente estrangeiro,
talvez a milhares de quilômetros. não saberia
não havia bairros ou cidade.
não havia relógio ou calendário.
apenas o branco pálido
e os pulsos amarrados às grades de metal.
detida involuntariamente,
gastava o tempo
a brincar com as plantas sensitivas.
fecham-se ao toque. era uma metáfora conveniente.
redescobri o que fazem as folhas, as bolas de futebol e as ligações por telefone
esperei que pessoas aparecessem na hora determinada --
o que quase nunca acontecia
e me punha a observar de longe 
outros animais em cativeiro com suas famílias
como se ali fosse seu hábitat.

dormia junto a duas senhoras acometidas de demência 
que todas as manhãs diziam, sorrisos de alívio, que iriam embora hoje.
ali o alívio era isso que fazia sorrir. 
nuas, urinadas, sentadas à cama de madrugada,
os cabelos vastos cobrindo ao menos os seios,
em imprudentes olhos azuis opacos.
aprendi a bordar. fiz em rosa o símbolo que carrego no peito
e pedia por favor senhor meus objetos pessoais trancados numa dispensa. 
os banhos com a porta aberta.
tinha prescritos três calmantes por dia
e aprendi a escondê-los entre a gengiva 
durante a checagem
cuspia-os no sanitário, seguidos de descarga.
eu tinha Hilda Hilst e um lápis concedido
contanto que eu não o enfiasse no olho ou no pescoço.
fiz coisas que nunca faria, como riscar um livro.

compartilhava cigarros com pessoas definidas como
com esquizofrenia, dependência química e soropositivas.
todos misturados, empilhados
como cargas descartadas pelo corpo social 
para não macular as vias públicas

diariamente jalecos brancos vinham
investigar se eu respondia ao adestramento
e o que mais aprendi ali dentro
é que bastava simular uma quantidade desnecessária de sorrisos e calma.

ao não sorrir, a ameaça declarada 
de permanecer por mais dias.

um dos monitores me tocava 
quando os Olhos pareciam distraídos.
não sei se faziam vista grossa. 
não sei também o que sentia.
eu não me esquivava.
mas todos os dias me esfregava no banho
até colorir de vermelho minha pele parda.

um outro monitor 
visitava o quarto de uma amiga
às duas da manhã.

o marido a colocara ali por " cometer adultério"
-- foi o que me disseram.

eu esperei na entrada que viessem
escrevi cartas que até hoje não sei se foram entregues.
vi um garoto mais novo tentar fugir
e logo depois, capturado, devorar um pote de geleia.

tudo em volta era branco e azul
apenas branco e azul
branco o azul do jeito 
que enjoa e entorpece.
havia um muro imenso e do outro lado 
diziam que haviam cães de caça.
nunca ouvi latidos 

eu devia vestir shorts mais compridos 
porque estavam em obra 
e os trabalhadores gostavam demais.

às tardes cantávamos 
exagerado, do cazuza.
e era nossa minúscula sucursal de resistência.

uma única sessão de psicoterapia
me trouxe apenas o óbvio
que nem mesmo isso realizava 
-- o abuso é um ciclo. e isso começou muito antes
daquela estrutura sequer existir como tal.
fizemos ironicamente uma linha do tempo 
embora não houvesse contagem alguma 
naquele interior embrutecido.

os benzodiazepínicos ajudavam a suportar as horas.
de atividades eu varria as folhas e pedia que me contassem suas histórias.
disse a mim mesma que era possível
me acostumar àquela rotina.

descobertos os toques criminosos,
foi o preço exorbitante da liberdade 
de volta em casa, deitei no chão 
como que abraçasse a madeira. 
marrom e creme. era o paraíso.
tomei um banho longo, porta fechada, 
pus música, 
mas não queria ouvir música.
cantei pra exercer a voz que descobri que tinha, 
mas não queria cantar.
precisava que pensassem que eu estava nova em folha.
como uma sensitiva

aprendi apenas a habilidade de agir-como-se-não 
e que nos consultórios são prescritas até as performances sociais.
é obrigatório mutilar-se em certo nível
para proteger os membros no lugar.
que a Histeria ainda era entidade nosológica válida.
que meninas não devem ter raiva
ainda que justificável
pois é imediatamente seguida de punição 
e que mesmo não oferecendo perigo ou resistência
ainda haverá controle físico
e a contenção é tudo que eles têm a oferecer 
que a constituição não se aplica a certos locais
e que homens te tocarão sem permissão 
sempre que houver chance de impunidade
e que a impunidade é, na verdade, a própria lei 
feita por homens para homens.
que há formas certas e erradas de exercer o amor,
que uma menina calada é o ideal de saúde
e uma menina encarcerada é o melhor tratamento.
a violência é uma lição ensinada repetidamente 
mas que basta uma única vez para ser assimilada
e que o resto fica por conta 
do apreço pela tortura.




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