coleciono
"vai passar" e
"basta ter paciência" e
"fique calma" – essa sendo
a pior coisa a se dizer
para alguém em sofrimento –
isso já faz 15 anos
todos eles a repetir jargões 
sempre contidos no privilégio 
de estarem do lado de fora 
mas nunca ousaram mentir tanto
a ponto de dizer 
que um dia eu teria 
um dia haveria para mim
uma vida valiosa

coleciono
"eu te amo"
cuja escavação posterior,
falanges carne viva, 
revelou espinhas de
narcisismo,
mentiras 
ou apenas
enganos circunstanciais 
– que eu tenho de perdoar
e eufemizar

coleciono
algozes, então 
certeza absoluta 
de seus papéis 
que hoje se mostram
apenas humanos
que não me amaram

e eu tenho de pronunciar
mais uma vez
"tudo bem"

coleciono
culpas maiúsculas 
em necessidade 
de serem endereçadas
apenas a mim,
e a mais ninguém 

coleciono ser,
constantemente,
desumanizada 
reduzida a um 
menos consciente animal
arisco e necrófago
a roer a própria carne
arrancar os próprios pelos
arranhaduras autorais
esganaduras biográficas

coleciono
conjecturas de quem eu seria
se não essa história pregressa,
se não essa doença demérita,
se não esses contatos repulsivos
se não os toques intrusivos
se não meus sim
apenas ecolálicos
houve certa vez um potencial gigante
que eu concederia a quem
não fosse esse cérebro 
intoxicado

coleciono
olheiras em abismo
e rugas específicas 
que constituem a face
como herança do pranto
rotineiro que se faz uma sina
o qual as demais pessoas
já se dessensibilizaram 

e ninguém emite 
nenhum comportamento 
que conforte
– em medidas paliativas
porque realmente 
não há mais o que se fazer

e ironicamente cheguei
nesse ponto em que
não me dizem mais
que "vai passar"

coleciono
espirais de abuso
que cumpriram perfeitamente
seu itinerário 
abocanhar
arrancando os pedaços,
mastigar brutalizando
um corpo já rendido
para logo em seguida
soprar as úlceras 
beijar os pedaços mutilados
como um necrófilo
a saliva amálgama
com o sangue ainda a escorrer
pelos cantos da boca
anestesiando a dor e
fomentando o delírio de que
não acontecerá novamente
será diferente 
para, pouco depois,
recomeçar o ciclo

coleciono
tornar-me a mulher
de acordo com as perspectivas
dos homens odiosos
como que por natureza 

coleciono
lembranças ternas
de quem, graças,
foi capaz de me esquecer 
e até me 
vilanizar 

saber que ninguém 
pensa em mim
como eu o faço –
em plano-detalhe repleto
de carinho e nostalgia 

sem intenção 
eu me construí repelente
e à prova
de amor
ou misericórdia 

saber que essa minha
suposta humanidade
com todas suas lacunas e 
acidentes fatais
não é compartilhada 
e esse meu sentir superlativo
nunca foi unânime 
nem ao menos
reconhecido ou
legitimado

e nunca suscitou
compaixão 

coleciono
acusações 
de que eu sou um monstro
violenta e manipuladora
absolutamente louca
e eu aceito esses epítetos
pois já desisti
de me justificar 
como quem se defende 
de um crime hediondo 
– simplesmente ser

não há vida alguma
possível no horizonte
apenas um corpo
na horizontal
descansando
numa mesa gélida de aço 

e eu repito
"tudo bem"

podem me arregaçar 
e constatar, sarcásticos,
que são os mesmos órgãos 
que eu sou como
qualquer outro cadáver
cuja putrefação mantém 
enclausuradas as histórias 
jamais contadas 
– nunca houve
nenhum núcleo 
de malignidade 
aqui dentro –
e só assim minha dor é expulsa,
anônima e silente,
juntamente às vísceras 
e meu sangue ordinário 
destinado a um ralo
jamais guardará em si
nenhum contexto

Postagens mais visitadas deste blog

caio,

whore

Armillaria ostoyae