ouço,
ouço
que não é tanto assim,
não pode ser
trata-se de impressão.
eu inventei
o equívoco
por livre escolha
algum homem que não conheço
há muito disse
que o modo como sinto
era fora da curva
e a história ficou
por isso mesmo
ouço
que careço de resiliência
e que conduzo a rotina
de modo desenfreado
em desnecessários extremos
e pensamentos polarizados
que tenho dever moral de evitar.
ouço
sempre sentada do outro lado
a uma mesa de distância
que existem formas mais corretas de ser.
como se eu não enquanto,
mas semeada tal qual joio
ouço
que meu passado
não precisa ser revisitado
que daqui pra frente basta cumprir
a cartilha dos marcos comuns.
que estou atrasada
que eu sou defasada
e permaneci lá atrás
pois me foquei em banalidades.
ouço
que sou demasiado autocentrada
e que lá fora é preciso
persuadir a realidade
e me fazer capaz
e me fazer sólida
e me fazer impenetrável
e que isso que significa
fortaleza. e saúde.
ouço
que é um demérito
é uma pena
mas é assim mesmo,
acontece a alguns
e todos os demais permanecem
vivos
como não me desejo.
ouço
que é estratégia
para conquistar um olhar
compassivo.
que é descontrole seletivo
e meramente fruto apodrecido
da dimensão interna.
ouço, ainda,
que é “meu jeito”
e não uma reação compreensível
ao desespero
e calo até
diante das falas
de que ter uma determinada doença
é o mesmo que ser
uma mulher má.
ouço
que não tem nada a ver
com aprendizado ou
atravessamentos políticos
tampouco cultura
não é sobre os homens
mas sobre uma mulher
falha como só eu
posso ser.
ouço
sem diálogo
sem trocas
sem alteridade
num projeto social
de emudecimento
ou do contrário,
abrir a boca
mesmo repleta só do grito,
seria falta de educação
transgressão à autoridade
e prova de insanidade.
ouço
que estou perdida
apenas porque eu mesma
tirei do papel
este não-caminho.
ouço, e só,
porque há muito disseram
que não sei de nada
e que valho menos ainda
e qualquer algo que eu pense
é justificativa
de porque eu só
ouço
e nunca posso falar