ele

é ele

no despertar de madrugada,
apavorada,
vestida de suor
– um único travesseiro na cama 

é ele 

na coluna que range e
nos pés que se arrastam 
e desistem
frente à pia da cozinha 
nas mãos sem pressão 
já meio deformadas 
pelos socos patéticos 
ao longo dos anos

é ele

no pão integral, 
no café solúvel 
no choro matinal
que talvez acorde os vizinhos

é ele

em cada uma das dez pílulas 
– especialmente nos calmantes
e no anticoncepcional

é ele

na esperança ao olhar
para as cartelas de sedativos 
que escondo com carinho

é ele, senhor,

nos cacos de vidro
no sangue que coagula onde pinga
abandonado na cerâmica 
pois eu já não ligo

é ele, sim,

nos cabelos que caem aos montes
nos cigarros que fumo à beça 
nos textos que jamais virão a público 
no mutismo traído apenas pelo grito

é ele

no imploro da minha fisiologia
e eu também não ligo

ainda ele

nas mensagens que não chegam
porque não podem mais chegar
mas a cada ligação avulsa,
eu ainda espero que –

ele 

no meu corpo rente ao portão 
os pés queimando no concreto fervente
nostálgica daquele olhar contra as grades
desejosa e

eternamente a esperar

ele 

nos seus pequenos objetos 
espalhados pela casa
que não tenho coragem de me desfazer
e não fito por mais que três segundos

é ele

na soleira da porta da cozinha
onde me sento, agora sozinha
lembrando dos natais
nus a experimentar aquele vinho caro

ele

no meu vai-e-vem pelo ambiente
sem encontrar conforto algum

ele

nos vários banhos frios,
com a cabeça submersa
nos cubos de gelo 

ele

quando na praia, 
no aguardo ansioso
quase me alegrei
com duas sombras na areia
até perceber
que ambas eram minhas
ele 
nunca apareceu 

ele

nas segundas e últimas chances
também desperdiçadas 

ele

no sono dopado
enfraquecida demais para encarar
os fatos

ele

nos sons banais da rua
e em todo local que frequento
até no sobrevoar dos pássaros 
e no percurso dos astros 

ele

em cada minúscula atividade vital 
principalmente nas que já não cumpro

ele

nas cervejas empilhadas na geladeira
na encomenda que chegou tarde
na aliança guardada
que não ouso visitar 

ele

no nome que eu não consigo pronunciar
a palavra um gume

ele

nos sonhos assassinados 
no riso morto
no ventre vazio

ele

no jamais
no sempre

ele

nas minhas juntas
debaixo das minhas unhas
no cabelo que roça à nuca
nos cílios permanentemente úmidos 
em cada reflexo da pupila 

ele

nas cores que eu 
já não sou capaz de decodificar 

ele

enquanto eu
encaro o veneno
meu consolo derradeiro 

ele 

nas compulsivas conjecturas 
que me contorcem

ele

onipresente no vazio
e em todos os meus dizeres
em solilóquio 

ele

em cada átomo desse corpo
em ebulição se negando
a cumprir função 

ele

na minha oração sem fé 
Deus, me mostre uma maneira
de sobreviver –

ele –
e não eu

pois eu nunca fui
sobre mim


Postagens mais visitadas deste blog

caio,

whore

Armillaria ostoyae