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Mostrando postagens de março, 2019
Não consigo agora, e calei fitando. Foi o que mais fiz dessa vida. Calar fitando. E esperava sempre algum tipo de resolução imediata da outra parte sentada no extremo oposto da mesa. Que intercedesse nesse meu silêncio. Que me alforriasse dessa tarefa de mastigar na retina.  Mas nada nunca. Mas nada nunca se seguiu assim. Não queria não. Não queria não, mas fiz. Corrijo. Deixei que se fizesse. E manchei meu progresso com escapes. Estar no controle era o que eu tinha, e de repente não era mais. Palhaça, conversadora, leve. Um engano com fim em si mesmo, eu me dei um jeito.  Minha verborragia sob aquela pretensiosa luz negra não era senão o calar supremo. Ali eu manipulava o carpir jurando que ele não tinha razão de existir e em casa tinha de chamar o choro. Eu fui. Palhaça conversadora leve. O mascote entre seus amigos. Confidente da sua mãe. Piada do seu irmão. Companhia de junk food, ...

rutilo

Nem mesmo o calor nauseante do elevador me impediu de prestar atenção à conversa das senhoras. De queixas comuns sobre o absurdo do defeito no ar condicionado ao clima inadmissível da cidade, as duas saltaram ao que interessava, com aquele olhar enrugadinho de pena, a cabeça querendo sacudir lentamente em negação, os oh!, ah!, Deus meu, a pobrezinha, tão lindinha. Lembro logo de minha neta, fulaninha. Creendeuspai, conforte essa família.  Você acha que está viva? já não sei... ouvi dizer que foi tráfico. Tráfico de gente? Tráfico de gente. E uma pausa na conversa para o choque e o sinal da cruz. E novamente o ar condicionado. Mas que porcaria, nem mesmo aqui se escapa dessa quentura! Andava tudo meio esquisito mesmo nas últimas semanas. A menininha do 1010-B sumira de dentro do condomínio. Os pais divorciados, a guarda compartilhada, a criança passava os fins de semana com o pai...

compacta 06/05/2018

eu não tenho que caber  em você me atrofiar pra não assustar sua falta de tato me abreviar porque você só tem um minuto e na verdade eu precisaria da reflexão e do zelo  de algumas das tuas horas mas alguém te ensinou que elas são demasiadas preciosas para o âmago amargo de uma mulher  você pode foder  mas não pode ir além disso você não pode ouvir ou abraçar também as asperezas  você só me eriça os pelos se for de medo e é por isso que mesmo fodendo não há gozo. essa estupidez como amante, é por ela que você pensa que "presença" é estar com o ouvido ao lado nos gemidos e não muito mais depois disso. mas nos nós que o choro causa você escolheu um imprevisto qualquer. e ainda pretende voltar quando passar esse carpir porque sabe que eu aprendi a amar até sua covardia. eu sei mui...

ventre vago

Já adianto que sou puta. Não tem pra "mulher da vida" que isso aqui não é nada parecido com vida não. "Prostituta" me embola a língua, pra que essa frescura de encompridar as coisas? Mania de rico pra falar direito do que é feio, pra se distanciar mais dessas desgraças de rua. Sou puta desde que tive meio das pernas pra ser; pode desarregalar esses olhos que aqui nos arredores do mangue isso é muito é do comum. Minha mãe era também. Como tu acha que comecei? Tem que ter alguém né. Sem orientação você não dura um mês, tem que entender dos macetes, o perigo vem dos dois sentidos: dos homens e das outras meninas que disputam esse espaço contigo - e um cliente é comida, mulher. Você com essa expressão condenadora, sacudindo a cabeça muito moralmente, me responde o que é que a gente faz com a fome. Hein?  Puritanismo não dá sustança. Fechar as pe...

substantivo feminino 1. m.q. REPULSA.

Seja direto. É porque eu não sou bonita? Ou por que eu até seria mas a doença me impede, e me erode devagarinho qualquer encanto, como uma lepra suavizada? É porque eu continuo perdendo minhas formas delgadas usuais dos últimos anos adolescentes? É porque eu fico óbvia de odiar meu corpo esparso? Minhas carnes rijas de tensão e mágoa, salgadas, ponto de brasa. Ou é essa curva de completa exaustão que permito que assuma minhas costas e meus lábios? É porque minha boca é um naco de carne pálido indizível? É porque poderia ser mais pintada de vinho cosmético, tinta e ébria a escancarar voluptuosidades, deixando o ar também carmim? É porque tenho frente ao mundo essa cara de enjoo geral e nada consegue me conceber um embrião do que é vivaz? É porque tenho olheiras de roxos côncavos, quase uma cova dos olhos? É porque suo indisciplinadamente sob sol t...
falhamos como pais  professores médicos  artistas jornalistas escritores humanos. falhamos como gente, como bicho e como outra coisa que seríamos  se não houvéssemos falhado. e o fizemos com nossas pequenas e fantásticas meninas, porque, por meio de mil maneiras, e todas minimizadoras, ensinamo-las a serem bonitas. e elegemos esse exterior como o mais propenso feito de uma mulher. "feito" porque ao doutriná-las, tornamos essa beleza uma conquista buscada a duras penas  às custas de saúde e personalidade e equilíbrio psicológico  e nunca alcançada, porque essa é a essência dessa beleza imposta: nunca se tem dela o suficiente efêmera, ela mesma se consome,  e obsoleta, suicida com a realidade humana. ela não condiz com o caráter da natureza docemente selvagem dos genes e da variabilidade da espécie,  e a maioria dos nossos traços são...

...

Ah, como eu queria te contar. Tenho mentido o tempo todo e isso tem nos sustentado. Sim, a mentira, porque o amor não protege tanto quanto as coisas não ditas. Como eu poderia te confessar o quanto tenho evitado tua presença, tuas visitas, teus convites...? Você não entenderia que eles me assustam porque mesmo eu não entendo. Tenho por ti amor imenso, amor que só as mulheres são capazes de fazer existir, instituindo uma outra própria vida fora do corpo, mas isso não impede que eu chore compulsivamente ao imaginar mais uma tarde contigo, ou me enoje com tuas camisas neutras e teus tênis discretos. Não me impede de rejeitar tua vinda, inventando escusas, embora eu precise e dependa – que você fique aí, em qualquer lugar algum, me jurando fidelidade e afeto. Eu tenho esse abuso de companhias, embora deseje tanto ser menos só, e esperar por quem quer que seja é uma tortura, dar bom dia é o...

BLAS(FÊMEA)

A sensação era a de que eu mal tinha cerrado os olhos. O maldito Éden zuadento começava sua rotina muito cedo, cedo demais pra que eu descansasse o suficiente. Adão idiota roncava baixinho ao meu lado, sob a sombra de uma palmeira, agora que o sol ameaçava atacar mais incisivo. Sua ereção matinal congelava o pinto num convite. Eca , eu disse quase involuntária. Me ergui sem cuidado de ser silenciosa, sacudi as folhas do corpo, arrastei os pés até um rio qualquer. A mesma paisagem, a mesma pessoa. Um pouco mais e lá vinha a voz trovoada me condenando o mau humor; se fosse você também reclamaria, eu respondia. E ele ficava furioso, aquela ira cheia apenas de " mas você não vê tudo que te dei? ", porque nesse primeiro testamento deus só vivia puto mesmo e é no segundo que ele lembra " ah é, o tal do amor ". Minha pele frágil agradeceu languidamente a suave conquista da profundeza...

PROLEGÔMENOS DA LINGUAGEM

Era uma mulherzinha vil; mas antes de ser vil, era uma coitada de si mesma - e de todos os aparatos odiosos sobre os quais foi construído nosso mundo. Aos dezessete uma ideia fixa e obsessora passou a povoar-lhe a cabeça: seria escritora. Sim, dezessete, os anos das paisagens mais acidentadas e quereres austeros. E foi com essa voracidade do mancebo que a moça se auto intitulou escritora, pensando que do ofício se esbanjava glamour e viço, ainda que quando na imitação da vagabundagem de uma boemia. Bastava fingir, dizia internamente como um norte. E forjando citou os cânones. Rimou o amor. Fez-se tristíssima, um luto só, fã do fado - e tanto forçou que já quase cria em si. Buscou nas prateleiras das papelarias os cadernos mais cheios de graça pra guardar seus verbos. caçava interminavelmente os assuntos, remexendo hipóteses, ornamentando métricas, elaborando enredos contaminados de escolas frances...

IMANÊNCIA. 26/02/19

onde você vai eu não posso ir eu tenho esses pés de vidro e meus pêsames  meu cabelo cai numa cascata sem volta onde eu vou há um rastro doirado brilhante e sedoso de perda e saudade tenho sido apressada: mais rápida que a morte enquanto ainda me movo minha matéria deteriora violácea e cor de adeus não dado lindos suicídios ensaiados em segredo  como quem trama contra o todo poderoso com licença - minha voz se esguia entre discursos de jovens atores apaixonados pela ideia de dor e não encontra forma  e não encontra ar essa doença tem fantasia de poema ruim, de moda do século  de desculpa  nao aceita essa doença sem face entre eu e o mundo, a enfermidade, me encapando os sentidos  todas minhas vontades  em cárceres e os outros, os outros quaisquer... são sempre mais verdes... não há um discurso objetivo,  uma c...