PROLEGÔMENOS DA LINGUAGEM

Era uma mulherzinha vil; mas antes de ser vil, era uma coitada de si mesma - e de todos os aparatos odiosos sobre os quais foi construído nosso mundo. Aos dezessete uma ideia fixa e obsessora passou a povoar-lhe a cabeça: seria escritora. Sim, dezessete, os anos das paisagens mais acidentadas e quereres austeros. E foi com essa voracidade do mancebo que a moça se auto intitulou escritora, pensando que do ofício se esbanjava glamour e viço, ainda que quando na imitação da vagabundagem de uma boemia. Bastava fingir, dizia internamente como um norte. E forjando citou os cânones. Rimou o amor. Fez-se tristíssima, um luto só, fã do fado - e tanto forçou que já quase cria em si.
Buscou nas prateleiras das papelarias os cadernos mais cheios de graça pra guardar seus verbos. caçava interminavelmente os assuntos, remexendo hipóteses, ornamentando métricas, elaborando enredos contaminados de escolas francesas e alemãs, afinal era uma estudiosa, uma intelectual, legítima artista.
Em sua defesa expunha sempre a produção das letras como um troféu imponente.
Cursou uma área outra, que a literatura era uma vaidade e não um ganha pão. Não apostava no professorado e menos ainda nas pessoas, embora apostasse em suas estórias e referências, as quais ela registrava como inertes e puras, ainda que feias, mas puras da intermitência humana. À noite, quando a maioria começava a recolher-se, ela espichava as pernas alvas e esguias do sofá e declarava, com entusiasmo, como uma reunião cronometrada: vou escrever. Fechava a porta do quarto, arregaçava as janelas, punha uma música morna, posicionava o ventilador e nesse cenário montessoriano construía instantaneamente suas narrativas. De uma fala bonita, começo-meio-fim, meninos e meninas proseados tão ilustres, colaborando com o tecer nobre das narrativas.
Jurava ser rota das emoções mais sublimes, dos pânicos mais remotos. Interessava-lhe esse interstício entre o dramalhão e as exclamações condecoradas.
Cedo, casou-se. As teorias de emancipação feminina haviam brotado há mais de duas décadas, mas nem ao menos as espiara, mesmo que sem propósito. Tudo o que se destinava a fazer era imbuído de expectativas quase messiânicas. E foi na mimese dos padrões gastos que se subordinou a um homem que nem amava genuinamente. Dele esperançava orquestrar uma estabilidade pomposa: metido com os arroubos da prefeitura, o dito cujo era trânsito de propina e escândalos sorrateiros como só os homens da lei conseguem fazer. Vivendo de canto de olho e silêncio sepulcral, percebeu-se entremeada naquilo também, e muito distinta se considerou, na missão de ser discreta sobre o mau caratismo; seus heróis eram épicos e valorosos - esculpidos pelo teclado de um dos primeiros computadores que alcançara a elite, pago com o tributo público desviado da obra duma praça do Siqueira.
Não pelejava viver cordialmente consigo mesma, era mulher branca até nas relações - monocromática, descorada, meio falecida. A postura, entretanto, era imponente - registrada inclusive em retrato da família logo no primeiro ano do primogênito. Posava ao lado do marido, mais baixa e abusadamente pálida, um sorriso contido apenas nos lábios, as mãos se encontrando unidas na frente do vestido. Mesmo Jorginho, a criança, estava séria e atenta, os olhos claros (orgulho da mãe) pregados na lente. Passado o registro, ela tornava a se recolher no ateliê e o menino era tomado pela babá, que o queria bem como a uma cria sua. Quando Jorginho balbuciou alto e convicto "mamamamama" em direção à ama, os pais decidiram que era hora de pô-la na rua, surdos aos apelos da moça. O menino adoeceu nos primeiros dias; depois ganhou outras mães de aluguel chamadas de Nanny, como no estrangeiro.
Uma delas vinha de um berço sofrido na Jurema, menina ainda perdera a mãe e pouco depois se deixara levar por um namoro cujas bases eram a carência e a orfandade precoce. O rapaz, avião desde criança, dava então os primeiros passos no tráfico. Logo vieram os filhos, engravidando do segundo enquanto ainda amamentava. O terceiro rebento tinha apenas alguns meses quando o pai foi assassinado em embate de facções.  Viúva e mãe de três aos vinte, ela contava com a generosidade da sogra, uma senhora feita inteira de luto, que enxergava nos netos pequenos uma outra chance pro filho. Desses daqui eu não desgrudo o olho, incumbia-se, embora soubesse bem que o destino do filho jamais coubera a sua vigília.
A menina encontrava na patroa o que julgava ser imensa docilidade na escuta. Relatava-lhe tudo, na naturalidade do léxico simplório mesmo, confessando até as mais densas vergonhas, os desejos mais cabeludos. A senhora testemunhava tudo com olhos se alargando em tamanha lucidez, e depois que o sol caía se punha a gravar tudo no tec-tec do computador. Ventrilocava uma voz que não lhe cabia, pois do povo só sabia mitos e o trânsito banal assistido do pico de sua torre de marfim, no décimo andar. E roubava por discurso o sofrimento do bicho-pobre que criava na área de serviço, enquanto este lhe ninava o filho, que crescia pouco reconhecendo o perfil aristocrático da progenitora, de nariz adunco e cabelos de reflexos acobreados. Impunha aos personagens provações estereotipadas, das quais só vira relampejando nos jornais ou nos desastres ou numa conversa informal sobre parentes distantes que ela agilmente rejeitava qualquer consanguinidade. Com seu certificado de literata, obtido em rica instituição particular, aprendera bem que a dor era o belo da arte - ainda que grotesca e consciência distante daqueles que de fato a sentem.
Não tardou e as coleguices políticas do marido lhe presentearam com um cargo satisfatório no fórum de justiça; um pouco mais e a Nanny empacotava as peças de decoração para a mudança: um condomínio-cárcere elegante, 190m², 20 mil m² de área de lazer. O filho de seis anos já possuía um imóvel. A mãe poetizava a democracia, valendo-se da desestrutura política do país, adotando gatos pingados de discursos feministas que nunca se deu ao trabalho de ler, mas a internet era uma dádiva. E defendendo por clichês e frases de efeito uma minoria que intimamente ela repudiava, esperava ganhar destaque no cenário nacional.
Suas quimeras orbitavam em torno da Academia Brasileira de Letras, e ela suspirava "ah, Machado..., ah, Sarney...", e mesmo pudica acrescentou a alguns poemas teor erótico – como se soubesse do que se trata um orgasmo – em busca de um público maior. Menstruava pelo fim do mês e já se mau-humorava, não pela TPM, mas pelo horror do sangue. Trocava os absorventes com as pontas macias dos dedos, travando a respiração pelo nariz, esfregando neuroticamente as mãos a cada ida ao banheiro. Nas contra capas dos livros sua foto sentada, pernas cruzadas, num mini paletó azul marinho, um sorriso flexionado, e a jura da escrita do Feminino.
Próxima do cinquentenário, as remessas das obras voltavam incólumes, e o escritório se abarrotava de caixas. Baixava os preços, propagandava pela página da internet que levava seu nome e o epíteto de escritora, compartilhava citações. Maldizia cada prêmio cedido a outrem, cada destaque de nome que não era o seu. Já não sabia o que fazer e à noite irrompia do sono com as mãos nas têmporas. O que falta, o que preciso fazer?, repetia, repelindo o consolo do marido, enfadando a terapeuta que já anotara o suficiente e disso faria um conto melhor que os da paciente.
Em ócio criativo, como ela gostava de batizar, pesquisou e analisou, recusando a própria consideração como a maior das blasfêmias. Tão temente a Deus jamais pecaria assim. Mas seu sonho, seu legado... Ser vista era sua cruz. Como Cristo. Queria ser lembrada, constar nos cursos... A mártir subjugada, a grande filósofa melódica. Conversou com Deus, sim, e em seu silêncio aterrador compreendeu que fora não só entendida, como abençoada com sua concessão. Era coerente. Era a saída.
Era, enfim, sua ascensão.
O menino no colégio integral, o marido no trabalho, e ela fumava um daqueles cigarros terríveis, engolindo a força a fumaça, por puro instinto boêmio que se obrigou a adotar. Abriu o melhor vinho da casa, pouco depois das nove da manhã, e mesmo da torre do sétimo podia ouvir os estridentes gritos das crianças na piscina elevada. O condomínio era uma micro Paris situado entre três comunidades - no ano novo os tiros se confundiam aos fogos e ela adorava mencionar isso nas produções. Finalizou ali mesmo a sexta, sem muito rigor – como era de costume. Enviou por e-mail para o editor. Caminhou preguiçosamente pelo palácio imponente onde o vento não conhecia obstáculos.
Parando em frente a uma das colossais janelas, seu reflexo alvo era lindo, tracejado pela bravura. Nenhum botox ou preenchimento se denunciava. O sobrenome italiano lhe cairia perfeito ao longo da História.
Equilibrou o pequeno pé rosado no parapeito, concedendo que o outro o seguisse. Uma única vez foi súbita, desplanejada das poses; e se jogou ad immortalitatem, ansiosa por sua cadeira na ABL.

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