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Ah, como eu queria te contar.
Tenho mentido o tempo todo e isso tem nos sustentado. Sim, a mentira, porque o amor não protege tanto quanto as coisas não ditas. Como eu poderia te confessar o quanto tenho evitado tua presença, tuas visitas, teus convites...? Você não entenderia que eles me assustam porque mesmo eu não entendo. Tenho por ti amor imenso, amor que só as mulheres são capazes de fazer existir, instituindo uma outra própria vida fora do corpo, mas isso não impede que eu chore compulsivamente ao imaginar mais uma tarde contigo, ou me enoje com tuas camisas neutras e teus tênis discretos. Não me impede de rejeitar tua vinda, inventando escusas, embora eu precise e dependa – que você fique aí, em qualquer lugar algum, me jurando fidelidade e afeto.
Eu tenho esse abuso de companhias, embora deseje tanto ser menos só, e esperar por quem quer que seja é uma tortura, dar bom dia é outra tortura, olhar os olhos uma tortura, cumprimentar mais tortura. Quero que passem sem me reconhecer, ué aquela ali não é a Babsi, não não é, ela nem disse oi, mas o mesmo nariz e olhos e boca, e quero que você continue pensando que não não sou eu, porque me despistar é muito mais fácil que explicar que meu medo passa por uma enzima inconsciente e se torna raiva.
Quero contar o que tem havido e o quanto parece que o céu desaba inteiro sobre mim, mas há algum bloqueio entre a mente e a boca, uma espécie de paraonde, para onde vão os desesperos dos quais falo (ou tento) senão a lugar algum? Não há sentido. Ficam ali mesmo aninhados e amofinados, aprendendo mais e mais sobre como ganhar espaço sem sair às ruas, não há território seguro para me livrar deles.
As pessoas coitadas não entendem essa língua que aprendi com os anos de convivência, há uma lâmina em todo o percurso dos meus aparelhos orgânicos e substratos até o além-corpo, há uma lâmina amolada e gentil decepando os porquês e os comos, e se um filhote deles escapa se desmancha em contato com o ar.
Eu não posso falar, não consigo, parece que eu bicho não fui feita pra isso, eu desde ameba já jurei que esses assuntos não me competem e por isso outra ameba igual a mim criou deuses. Para que jamais ousássemos nos sentir pointless como realmente somos e estamos, somos e estamos. Verbos distintos que cabem aqui, porque não é só potência, é momento.
Inútil.
Essa afasia.
Nenhum fonema, sílaba, vocábulo, nenhuma poesia aliterada, nem o mais articulado dos manifestos traduzem com o mínimo de verdade e coerência. É caos demais para ser brutalmente retido em letras, inda mais em corpo, é impossível que de fato exista – mas eu e milhões aqui.
Todos os afazeres diários, o trabalho, as contas, a higiene, o sono, o lazer, o amor – é tudo desubstancial, de tudo é corroída a polpa, e uma casca vazia inoperante quebra ao toque; nossas mãos flagelos cheias de farelos, estendidas mendigando e sujando os outros. Mas ninguém nos toca porque parece infecto, uma peste negra, é essa mania de falarem de energia ruim, mas se você acha que minha aura é densa e sombria e pesada, por que não imagina como deve ser pra mim carregá-la?
Eu ando por aí como arrastando um manto de miséria e matando as flores rasteiras que piso sem querer e fedendo nos ambientes fechados. Miss Cadaverina. Será que Jesus saiu também fedendo no terceiro dia? Eu já tenho uns vinte e tantos anos assim.
Nada leva a algum ponto, por que as vidas moldadas, por que o tempo padrão, as expectativas, o esperar, e aí, quando casa? E os bebês? A faculdade, termina quando? Tem algum emprego em vista? Você precisa tomar banho. Você precisa parar de fumar. Você precisa tomar um rumo. Você precisa se tratar. Você precisa, você precisa.
Eu já falei das pílulas? Elas têm cores bonitinhas, como brinquedinhos de matar. Já mudaram tanto que eu nem sei mais pro que são, o que era eu antes delas, ou o que tenho que precisa ser consertado. Agora: quatro pela manhã e mais duas à noite, parece um coquetel, mas já foi pior. Acho que elas tentam me forçar a ter essas normalidades sentimentais naturais a uma maioria, um pouquinho a mais disso e bem menos daquilo e voi là, vamos ver se agora você funciona. Tem estado triste? Tido alucinações? Parou de arrancar cabelo? E de roer as unhas? Consegue sair de casa? Os tremores pararam? Tá dando pra dormir? E os pesadelos? Voltou a se cortar? Qual a última vez que tentou se matar? E ajustam as doses. Agora vai lá, a terapia. Já contei meus segredos pra umas três dezenas de desconhecidos apáticos. Pode dizer, vou anotando. E cada murmúrio meu era transposto em termos técnicos.
Já fui revirada, avessada, repuxada, cobaia. Não acham o problema, ele se esconde, danadinho. Conhece cada buraco, mucosa, despensa, recôndito gosmento desse corpo e pra lá corre, sustentando a respiração, fugindo das luzes. Meus Problemas não querem sair de suas casas. Seria mesmo opressor dessa perspectiva; oh, olá, como assim tenho de abandonar tudo que tenho aqui? Como assim estou sendo despejado? E minha família, meus filhos – os pequenos Traumas? Eles têm se desenvolvido tão bem aqui, por favor não mexa neles. Aí, eu sou tudo que eles têm.
Olho essa amorfidade no espelho e morro de saudade daquele corpo esbelto e proporcional que eu era antes dos piores dias – que ainda pioram. Uma espécie de nojo me brota, não reconheço essas medidas, na verdade as repudio, isso não sou eu, isso é o que foi feito comigo. Eu não me comeria e cuido para que ninguém o faça. Parece uma blasfêmia deixar que essa carne tremenda se choque com qualquer outra simulando amor quando eu a detesto com todas as minhas mitocôndrias. E não me ouse dizer que as mitocôndrias a pertencem – são minhas, MINHAS! O que acontece é que visto um berro estranho, alienígena, que me transborda. Pareço ter sido engolida por ele.
Não me venha dizer que isso é coisa que se cria. Eu não conheço ninguém que prefira desespero a um gato.
Eu não deliberadamente vi o horror, achei uma gracinha e o deixei ficar, nutrindo e concedendo regalias. Não sei se nasceu aqui, se eu o pari por dentro, ou se ainda estou a pari-lo – porque dói a cada instante. Não sei se uma virose o implantou, se quebrei a razão numa queda daquele cajueiro do Pecém, se ele veio durante o sono e me pegou desprevenida. Isso explicaria porque agora só durmo rija, com os dentes em combate uns com os outros, os músculos latejando de tensão no dia seguinte. Não me venha dizer que o deixo ficar porque nem sua cara nunca vi, menos ainda diga que a cara dele é a minha. Eu não sou um parasita desmiolado que surrupia os miolos alheios. Eu não sou esse profano invisível, esse veneno que coagula as emoções mais brandas. Não sou esse superlativíssimo austero contaminando os textos. Não aceito desculpa nenhuma. Vocês querem mais é que nos matemos nós mesmos, já que sabem do desenfreio dessa pulsão irreprimível.
Não não. Não venham com essa velharia de consolo à la Pollyanna.
Eu gosto do vintage, não do arcaísmo ignorante. Não somos bravos, nem soldados, nem corajosos, nem lutadores. Não somos sobreviventes. Não há beleza, definitivamente, não há beleza alguma em continuar vivo. Não há beleza em desdizer a si mesmo e saber-se auto ameaça. NÃO HÁ BELEZA, repito em maiúsculo.
Eu não sou mais bonita.