rutilo
Nem mesmo o calor nauseante do elevador me impediu de prestar atenção à conversa das senhoras. De queixas comuns sobre o absurdo do defeito no ar condicionado ao clima inadmissível da cidade, as duas saltaram ao que interessava, com aquele olhar enrugadinho de pena, a cabeça querendo sacudir lentamente em negação, os oh!, ah!, Deus meu, a pobrezinha, tão lindinha.
Lembro logo de minha neta, fulaninha. Creendeuspai, conforte essa família.
Você acha que está viva?
já não sei... ouvi dizer que foi tráfico.
Tráfico de gente?
Tráfico de gente.
E uma pausa na conversa para o choque e o sinal da cruz.
E novamente o ar condicionado.
Mas que porcaria, nem mesmo aqui se escapa dessa quentura!
Andava tudo meio esquisito mesmo nas últimas semanas.
A menininha do 1010-B sumira de dentro do condomínio. Os pais divorciados, a guarda compartilhada, a criança passava os fins de semana com o pai a cada quinze dias e feriados, e resolveram ir à praia naquele carnaval. O que nós, demais hóspedes, sabíamos do caso, era apenas o que se podia deduzir a partir das câmeras de vigilância; ela descera sozinha para a área de lazer, sentara na borda da piscininha infantil e ficara lá, sacolejando as perninhas submersas até que subitamente algo lhe chamou o olhar na direção do estacionamento. Larinha, que esse era o nome dela, correu até esse ponto cego das câmeras e não mais foi vista. Desde então todos os pais estavam aterrorizados mantendo suas crias literalmente bem abaixo dos narizes. Muitos deixaram o hotel - ninguém queria se sentir numa cena de crime, e essas fitas que isolavam o apartamento, o trânsito dos policiais, as perguntas dos jornalistas carniceiros e os "tique" de suas câmeras não colaboravam. Cada apartamento ali foi inspecionado do avesso, a menina tinha sobrenome das europas, a família era de posses. No mesmo dia do desaparecimento a mãe chegara, muito loira e pálida, só os olhos vermelhos de choro criando um contraste naquela brancura toda. A mãe dela parecia uma rosa branca fantasmagórica, eu lembro de pensar. Não fora capaz nem mesmo de disfarçar o desprezo pelo ex-marido na face abatida de bochechas descoradas e eu, peste curiosa, me perguntava se isso era antigo ou partia de uma possível responsabilidade que ela lhe relegava sobre o desaparecimento da filhinha.
Dizem mesmo que o choro de uma mãe desesperada é um dos piores sons que se pode ouvir na vida. E verdade, eu senti dó dela ali, com aquela espécie de uivo que não conseguiu se conter nem diante da imprensa. Já era o quinto dia e agora procurava-se um corpo.
Eu não morava longe da cidade, mas só passei a vir ao litoral nas férias e feriados com meu segundo casamento. Agora ele também acabara, mas o lugar havia me cativado e eu não abriria mão dele em nome das memórias. Ao menos repetia para mim mesmo que não deveria. Comigo vieram Claudia e Miguel, um casal de amigos. Era a primeira vez que eu fazia concretamente algo depois do divórcio e estar na presença de um casal tão sólido só tornava tudo mais estranho. Estranho, não incômodo; mas também não exatamente uma maravilha. Resolvi me ocupar do prático e substituir minha solidão por boa comida, algumas doses de álcool, minhas velhas músicas de delinquente. Comprei bastante carne para um churrasco no deck. Deixei o vinho para as noites úmidas na urbe e tive de usar um pouco mais de logística para encaixar os fardos de cerveja no carro. Eu podia viver só. Eu tinha de.
E então a menininha sumira e eu não podia fazer meu churrasco e exceder um pouco meu limite. As velhinhas me confrontariam com os olhos estreitos e as bocas murchas imóveis, "mas o que esse imbecil está comemorando? Não vê as pessoas devastadas?", e eu queria dizer que é claro que via, mas também sentia fome e imaginava há quanto tempo não preparava algo banal pra mim como uma carne mal passada. Nos últimos doze anos Virgínia, a infeliz, me empurrara pra lá e pra cá em restaurantes vegetarianos, veganos, quando em generosidade um japonês. Eu não suportava mais tanto mato, semente, azeite, erva, soja, meu amor isso é saúde e humanidade, prove só esse cogumelo shitake, e eu queria sim abrir a boca, mas para dizer, Virgínia querida, enfie o cogumelo naquele lugar onde não há humanidade. Virgínia não assumia as carnes nem na cama.
Mas e aí surgiu esse boato de tráfico não sei como, talvez do tanto que as pessoas se interessam por crimes sórdidos e esperam sempre o pior. Eu desconfio que lá no fundo isso as conforte, alimentando ocultamente seus monstrinhos interiores. A pequena era uma gracinha, loirinha como a mãe, mas menos lívida devido à energia enrubescida das crianças novas. Vestia uma combinação de maiô vermelhinho com um short branco de bolinhas também vermelhas. Encontraram os chinelinhos ainda na borda da piscina, tão logo ela pensou que voltaria ao canto depois de correr em direção ao algo misterioso. Havia cartazes em todas as colunas do hotel e estabelecimentos ao redor - e imagino que em toda parede dessa cidade. Pelas redes sociais também o apelo era intenso. Ofereciam recompensa de quatro dígitos e eu imaginava que mais dígitos se acumulariam conforme crescesse o pânico. #EncontreLarinha não demoraria a tornar-se #FindLarinha com a entrevista que os pais concederiam ao programa do meio dia. Eu não queria parecer cruel e jamais verbalizaria isso, mas, pensava em quantas crianças igualmente eram acometidas dessa ou pior ausência e não eram noticiadas ou lembradas. Mas era o dinheiro. Ou não. Eu gostava de repetir pra mim que às vezes, talvez até na maioria, as coisas não têm por si mesmas uma razão. E tudo bem.
Sentado no extenso deck com Miguel e Claudia, observava o movimento rijo de vai e vem dos hóspedes, e quase podia sentir o cheiro acre da carne, meus dentes vencendo sua resistência ao rasgá-la, a suculência escorrendo pro fundo da garganta. Miguel havia comentado que era tudo fruto da minha crispação e ninguém iria interpretar como desrespeito. Eu era um sujeito tenso, ele dizia desde que saíamos os quatro - junto com Virgínia. Homem, traga tudo. Vamos assar e alimentar esse povo que de barriga vazia ninguém vai achar essa criança.
Bebericávamos e temperávamos os nacos adotando uma postura solene por precaução. Eu fumava um charuto de cravo. Tal hora erguendo os olhos da tábua de cortar e fitando Miguel, quis rir; seu rosto contraído não era o mesmo do jovem magrelo da faculdade, o cabelo nos ombros amarrado num rabo de cavalo baixo, o violão arranhado pra cima e pra baixo na case gasta. Os temas metafísicos. O pai empresário perdendo os últimos fios de cabelo com a preocupação. A maconha prensada, terrível. E o rumo esquisito que tomamos até essa sua cara contraída mas livre de espinhas, enquanto nessa atividade ainda mais simples que descobrir o segredo do universo, como naqueles anos dourados, brincando de suburbanos, marginais.
Acabou aqui. Quer que eu pegue o resto?, ele perguntou, as mãos sujas de sangue interrompendo minhas divagações.
Demorei um pouco a captar o momento, e respondi que não. Que ficasse ali, com Claudia. Tão bonitos eles, acho que nunca disse isso - e bom, também não o faria agora.
Desci a uma das espécies de adega do hotel, eu havia alugado um grande freezer só para essas malditas carnes, sentia que era capaz de comer até me rasgar. Abri a pesada tampa, ainda tinha um bocado. Ótimo. Empilhei mais alguns pedaços para levar pensando que nunca devo ter sido bonito com alguém como acabara de decidir que o eram meus amigos, e ao fechar o congelador notei um brilho tênue que lhe escapou não sei de onde. Segurei com os dedos em pinça.
Dois ou três fios loiros - eu nem saberia dizer, de tão finos, quase como de um bebê, não fossem um pouco mais compridos.
Olhei em volta. Vazio, silêncio. Tornei à miúda cintilância. Mais vazio. Mais silêncio.
Saquei o isqueiro do bolso e observei, em dois segundos apenas, os fios de ouro se consumirem entre meus dedos.