baby blue

semana passada ele cancelou comigo.
voltei aflita, e meti em mim o que pude de comida
como se isso pudesse sanar ou sarar o choro
quem sabe compensar a ira.

eu nunca tinha fumado num consultório.
me preocupo com os outros.
dos outros lados, 
muito depois dos muros.

você se preocupa com os outros?
sim. eu fui sincera. eu sempre fui.
e quis chorar de novo porque sei o quanto já rasguei pessoas 
falhando sincera demais com o que queriam,
mas não comigo mesma.

quis ser real pra eles.

não, eu não posso.
não, eu não tenho.
não, eu tenho de te dizer não. 

ele, esse homem imenso, de mãos grossas,
cruzadas atrás da cabeça,
descalço e despreocupadamente largado no trono ébano 
me enfiava os olhos de um jeito desconfortável, torto,
eu ziguezagueava pelos planos, na decoração,
no reflexo da mesa, nos saquinhos de chá, na bandeija com mussarela ainda meio cheia sobre um móvel,
no biombo de madeira,
e voltava àquele mesmo olhar que não me dizia, apenas enfiava a seco, socando mesmo,
olhos mais longos e pontudos 
nem aí pros óculos, pra distância, pra resistência do ar, pra gravidade, pra idade, pras minhas lentes
pro meu discurso
proeminente
na minha cara apelando
pelada e prestes a desabar
"vou chorar"

eu contei o que lembrava, na desordem
da vadiagem
e exigia, só uma vez, de uma vez só, tenha dó 
faça o que tem de fazer
me ponha os tais nas têmporas 
me faça ver os pirilampos 
os vagalumes vesgos
os pisca pisca dos natais 
dos suicidas em cascatas

as pessoas tossiam em resposta
a um cigarro inocente que havia acabado lá fora
e eu me senti incômoda tão nojenta

ele cerrou os olhos
achei ter dormido, eu acreditaria
ele se moveu meio absorto,
desértico

não queria voltar pra casa e assistir escurecer
por favor doutor
não deixe chegar a noite

depois dos guinchos de imploro
ele não mudou a medicação 
e perguntou se eu precisava de algo
me obrigando a sair

sim seu bastardo escroto eu preciso que você me indique o que fazer com as mãos 
quando elas pinçam o cabelo e arrancam fios no estresse 
doutor, eu preciso trabalhar
preciso que você me apresente opções 
não as que eu conheço e decaio
justamente por você estar aí sentado
preguiçosamente 
enfiando meu dinheiro no rabo
enquanto eu arranco as crostas do último corte
e visto bandagens 

você nem mesmo lembrou meu nome
ou a história que te contei há três  semanas

mas então respondi que queria uma receitinha azul
aquela das tarjinhas pretas
porque eu sou só isso de preta e azul
uma baby, baby blue 

no caminho arranquei uma flor direto do talo.
mamãe ainda vê beleza nas coisas mortas.

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