lávica
falo.
por mim. por ela. que nem conheço.
pois não preciso.
porque eu sei.
falo.
pela outra. e mais uma. por todas.
nosso exército de endométrios
que, como auto imune,
sangra a si mesmo.
odiamos
e repelimos,
e repetimos:
odiamos
nossos corpos
odiamos
nossos seios
caídos e profanos
não europeus
de aréolas imensas -
pérolas castanhas pendentes
odiamos
nossas barrigas
que protuberam
com a idade
e formam camadas ao sentar
odiamos
nossas curvas acentuadas
nossas gorduras
essas fudidas gorduras
centralizadas
estranguladas sob cintas e disfarces
tão distantes dos comerciais
de abdômens lisinhos
odiamos
nossos grandes lábios escuros
em nada semelhantes
às vaginas puras dos pornôs
odiamos
essas costas
de mais dobras
que um livro de versos
odiamos
nossos sinais de mulher madura
nossa baixa de colágeno
os fios grisalhos
nossas inocentes rugas
odiamos
nunca sermos
suficientemente
gostosas
perfeitamente desejáveis
odiamos
os ossos escondidos
pelos tantos quilos
e por outros tipos físicos
odiamos
nossos culotes
nossas celulites -
cruéis denúncias
de supostos descontrole
e fraqueza
a vilania
a cólera
das coxas muito grossas
flácidas
assadas de fricção
odiamos
nossa bunda imensa
com manchas de espinhas
odiamos
nossas manchas na virilha
nossas manchas na axila
de depilação -
pelos que insistem em espetar no outro dia
logo arrancados com violência recomendada.
a beleza dói.
tortura e decepa
porque não existe
senão sintética.
a beleza mata.
o ódio que insiste em nos escravizar
braços dados com o capital
procedimentos estéticos invasivos,
perigosos, açougueiros.
mulheres de plástico
esculpidas. criadas. na faca.
mulheres não do barro,
mas do silicone e do ácido.
dos cílios extensos ao clareamento anal.
o embranquecimento obrigado -
coagido e declarado ideal.
odiamos
nossos corpos
não aprovados
pelos homens
que os comerão
insatisfeitos
e nem mesmo
nos notarão
secas e frustradas.
e gozarão imundos
sobre nossas barrigas encolhidas
e bundas empinadas
pra parecermos mais atraentes
sem saber porquê.
porquê parecer atraente...?
sedutora. fatal. linda...?
porquê sermos bibelôs de esperma...?
porquê tanto esforço e desgaste
pra parecer outras que não nós mesmas?
odiamos
nossos corpos
como nacos muito pesados,
pendurados
em exposição frigorífica
decoramos poses
que mais exaltam
a fórmula rasa
da ereção da década:
uma voluptuosa e magra europeia.
bilhões de mulheres no planeta.
bilhões de suas mentes na sarjeta.
e um único modelo
computadorizado.
nada mais que uma imagem -
que não fala. que não pensa.
não contesta.
que não é.
odiamos
umas às outras
porque nos sussurraram
que a outra vulva
é sempre uma ameaça
e que um falo
é uma conquista.
mas uma vulva sem culpa:
isso sim é vitória.
eu estrio o amor esquelético,
eu sangro a pureza da espécie
eu gozo os direitos humanos
eu amamento o futuro
enquanto meu peito enquadra toda uma revolução.
eu falo da vulva
viúva histórica
dos seus pelos
do seu conhecimento
do seu lúbrico
do seu lírico
do seu orgasmo
eu falo da vulva
preta, rosa e roxa
prisioneira política
violada, censurada e muda
mutilada em rituais e vinganças
a vulva puta e vadia
nojenta e fedida e ferida
a santa vulva de Maria
a vulva quente embruxada
líquida de língua e lascívia
fresca, escandalosa,
polêmica, notícia
absurdamente odiada
mas, mais que isso,
temida
escancarada
como todas as meninas
deveriam sentar-se
escancarada
como borboleta carmesim
de asas envergadas
eu falo pelas nossas pétalas
envelhecidas e desamadas
imobilizadas e soterradas
entre as pernas das donzelas polidas.
eu falo por nossas meninas
incendiadas nas toras sob acusação
de serem desalmadas
e amantes de mefistófeles
eu falo por mim e por ela.
que não conheço. nem preciso.
mas sei.
embora sejamos a luta
com a qual o estado mais se preocupa
ainda fugimos. pois vulvas são fortes
vulvas são tantas. vulvas são casas.
mas são caçadas e desarmadas.
odiamos
nossos corpos
por milênios
aliciados e proibidos
de serem outra coisa senão
produto reprodutivo.
odiamos
nossas vontades violadas -
mas não há nada mais odiado
que o "não" de uma mulher
porque
apenas
não quer.
odiamos nossos corpos
porque toda lei é fálica.
odiamos nossos corpos
porque somos odiadas.
e ainda que falidas
cansadas
trágicas
juradas inválidas
desaparecidas e desautorizadas
falo
em nome das baleadas
e de cada uma do epicentro
de sua vala
que cada fala
para eles
será sempre
uma puta catástrofe
de vulvas lávicas.