Você morreu todas as vezes que desejou
Instrumentalize.
Faça algo com todo esse ódio, com todo o veneno que te cabe. Não ouse deixar que ele destile e escoe sem rumo, à toa, gratuito, como o sangue puro da tua menstruação que escorre pelas coxas até o ralo.
É assim que você não se deixa ser vencida. Não podem te devorar dessa forma. Se você gostar da dor. Se você fingir que precisa dela.
Continue.
Sinta a dor, consuma, beba. Engula o sangue seco, deixe ele coagular na garganta. Seja a maior fã da tua morte.
À primeira vez que você viu sorrowing old man pensou: que ridículo. Como isso é arte. Como isso é qualquer coisa. Como isso é outra merda senão cores espatifadas numa tela, sem sentido, tom de malária, como isso é algo que não além de nada.
E hoje, eras depois, no Ceará, aos 21. Você sentou da mesma forma, na mesma pose, e viveu. Viveu a tela. O homem amarelo ou cinza na cadeira. A cabeça entre as mãos. Sem orelhas. Sem olhos. Sem face. A vida num fio querendo ser rompida. Suas mãos tremendo na lâmina. O homem sentado. A face nas mãos. O que fazer com essa cara. O que fazer com o agora. O que ele fez com o que tinha. O que ele fez com o azul, com o vermelho. O homem amarelo virou escarlate. Você virou pálida. Uma sombra mais pálida que o branco. Bebê azul sem ar na escada, pernas formigando, a fúria empapando as axilas, as virilhas, a testa, escorrendo do couro cabeludo, grudando os fios do cabelo ralo na nuca.
Seus colegas se formando, trabalhando, partindo, parindo, casando, forjando sucesso, mas seguindo. Você com os pés impregnados na linha amarela, as mãos na parede, os olhos no chão. Nem mesmo as curvas, do corpo ou sentimentais, nem mesmo a montanha russa, só declínio rumo a um fundo infinito. Que nunca para de escurecer. E nunca diz que há uma razão. Os colegas rindo, se abrindo, amando, fodendo, metendo, ossos batendo, articulações suadas se esfregando, com os gemidos de gozo, opostos aos teus. Usando a existência, a paixão, a veemência, agradecendo a deus.
Teu ex, teu ex que tu ainda ama, virando uma lembrança esfumaçada, em extinção. Teu ex comendo outra de quatro, espalmando a mão imensa numa bunda linda anônima, teu ex percebendo que nunca te amou e indiferente sobre te encontrar ou não. Teu ex gastando os anos que restam pra todos, e você dentro do tempo quando é ele que rasta, desmama e assassina.
Tu, um dia bonita, mas aqui velha e estática, arrancando os cabelos pra fazer sua cama dourada, dobrando os joelhos sem poder fugir porque pesa demais. Teu coração de 300g. Tua angústia mórbida em 300g. Envenenada legalmente, com a cabeça entre as mãos, derretendo pelos dedos roídos e esganiçados, escavando a testa, tentando arregaçar arestas em imploro de uma larva de vitalidade.
No manicômio todos tinham suas pílulas, sem tabus, seus túmulos com textos disponíveis, você era rainha entre os seus. No hospício os muros eram apenas de concreto, no mundo os muros são feitos de ti. Desde os 14 aos químicos e barrancos, sem saber o que se é genuinamente, um crime ou uma fase, uma mulher ou um arremedo, um azar um engano um acidente.
Toco triste a melodia das mãos sedentas contra os vidros e assisto a vida elétrica lá fora, os corpos em trânsito, corpos ginásticos elásticos em expansão, sem medo, quase sem história, se remexendo cheios de finalidades e tonalidades que salpicam no vidro e você raspa com as unhas que não tem, cria estrias na superfície, não pode trincar, rachar, atravessar. Dá cabeçadas, deixa o sangue descer como lágrima, é gostoso o morno do ferro, um fiapo solto de quando você foi felina sibilando. Simula o sol morenando, o oxigênio cumprindo função, o cérebro irrigando, enquanto a nicotina tece a bigorna e vigora nas veias, entupindo cada canal e vigiando as estações. Grávida de vícios.
Uma matricida desde tenra idade, um aborto não concluído, você é um caso em aberto sendo estipulado até no máximo uns 30 anos, quando os órgãos desistirem bem depois da tua vontade, mas o que é você? Nada bio, nem psico, nem social, nem a pau, nem a buceta, nada além de um reflexo sem moldura ou expressão. Tudo morto, outra carne que cai na conta e apodrece como deve ser. Ao menos isso se faz como deve ser.
Você não pertence, você não procede, você não existe, não dança nem ouve, não fala nem é sabida, é um prazo labiríntico e uma piada órfã. Você tem 14 anos de novo e nenhuma outra chance. A cabeça nas mãos. Os olhos furados, delatados em tanta pupila de cinzas.
Onde a luz não entra. Nem com licença ou mandato.
Onde a luz tem medo de mirar.