corpo de prova
é um mau hábito julgar pelos pronomes;
mas renuncio a iniciar poemas na primeira do singular.
não venho primeiro. apenas sou só.
outro desses falidos banhos me pegou,
e eu usei os olhos em mim.
e deu uma vontade de rir
lacrimosa, mas rir
do que foi que você fez.
deixei, claro. permiti passagem
estadia aluguel morada
habitat zona de conforto
desmatei e fundei pólis
contive os pólos pra te afirmar.
àquela noite eu usava um vestido fino
longo e verde escuro
distoante da maioria em seus trajes de calor incessante
te espiei por entre as árvores e nunca me atingiu o pensamento
de que qualquer contato ali se transformaria
no que eu fito hoje
com ou sem desprezo, não importa, não cabe valor
eu nunca imaginei que tu se estenderia como uma rede de luz mais veloz que o tempo
subordinando meu campo de defesa e ataque
me alvejando e almejando (ambas coisa só)
e sei lá o que eu mesma fiz de mim.
àquela noite os mais novos vomitavam, curvados sobre os bancos
os menores de idade amavam os excessos
os líquidos os fluidos a gosma o sal
e eu suava tanto, escorrendo pela testa e entre os seios
sem cogitar que anos depois seria um costume tu limpar meu rosto úmido e gelado com as mãos
fazendo graça da minha transpiração ansiosa
mas esse corpo sacudido, maduro
esse corpo que já viveu seus dias quentes de menina
hoje gritado mulher e brigado em abstrações de ideologias e doenças
se teve perpassado e afunilado
acumulou teus dedos como lanças tortas afiadas
autorizou afagos que irromperam mucosas.
os meus pelos foram arrancados além da raiz
cresceram de novo negros e dourados
finos e grossos e coitados
baby hair em caracóis que atraíam tua ternura e minha impaciência
todas as vozes na minha mente
o coral escarlatinado
me exigindo romper as fronteiras;
eu cresci nervosa entre os limites,
mas você foi correndo desajeitado arrastando as linhas
e eu me enganando
"tudo sob controle"
sua divina relação com esse corpo é uma sensação no vácuo dos termos.
e nem sempre me incluía.
por vezes assisti de dentro, do quarto de despejo, da despensa, como vocês dois pareciam se entender
nos diálogos suspensos -
a invenção do fogo
primatas e fricção.
no princípio não houve o verbo
eu confiei em me abster dele
porque é só no corpo que não existe ficção.
claro que falamos - através
doutras dicções noutros propósitos
e aquela mulher de frases
que nunca fora virgem porque isso é um rito e um mito
aquela mulher cujo hímem foi um cárcere pra um carniceiro
aquela mulher de outros sexos
foi nua à primeira vez.
sobre teu peito, riscando com os dedos despretensiosos textos nas tuas máscaras -
tuas iscas cósmicas
naqueles dias de algum mês do século XXI
(que poderia ser qualquer outro porque os ecos são atemporais)
eu esqueci do quanto detestava o formato dos meus seios
do quanto estava rasgada por estrias e traumas
ou de como minha cintura não era mais fina como antes dos desastres
aquele corpo ainda funcionava
ainda respondia à soltura do desejo
aquele corpo parecia meu.
eu esqueci de ser a filha ingrata.
a amiga traída. a namorada insana.
a vagabunda inveterada, a bêbada, a chapada. a bastarda. a desacreditada. a chacota. a profundamente perturbada.
a última folha a cair.
eu esqueci do chão.
eu era um corpo. corpo meu contigo. bastava.
e eu nunca tinha dado adeus.
até que nenhum arsenal militar de moléculas foi suficiente
e eu não conseguia manter as luzes acesas sozinha.
tateava tentando voltar ao início.
mas teus olhos saltavam das órbitas noutras direções. e os meus de molho.
e os meus,
de molho.
qual prova de beleza você quer?
eu me aquarelo... eu viro o amarelo de van gogh
eu viro o prisma do floyd
eu fico na ponta dos pés, eu te iço, faço de cama o suicídio das cores dos ipês, dos jambos
qual prova de beleza você quer?
agora não sei como ser de novo corpo
agora nossas filhas são milhas de indiferença
agora eu peso mais que qualquer desculpa.
agora as promessas são como roteiros chinfrins de romances bregas e que fazem questão de terminar na paixão,
porque ninguém quer contar que ela tem seu prazo e uma coluna muito muito frágil
feita de retalhos intensos. chamas que prendem a respiração. das horas do rush.
feita do que é bonito.
e o que é bonito dura não mais que um instante. não mais que o crush. um piscar. uma faísca. um lusco fusco. chispas a flux. descarga elétrica.
como quando ouvimos o coro e saímos da barraca
e a serra inteira parecia dominada por vagalumes.
o que vive
é o feio.
o que ama
é o feio.
e você não suportou minha feiúra.
a sua divina rejeição a esse corpo
me atira contra ele
à queima-nudez.
quero deixá-lo, quero o divórcio
quero o desquite, ser destilada.
outro destino além do sangue
além da carne-grade
e da suspeita sob minhas unhas.
eu ainda vou à serra
e a amo profundamente
sem os vagalumes.