anzol

de quantas demonstrações você precisa --
quantos dar-de-ombros, dores infligidas intencionalmente 
para "ensinar uma lição" 
expressões outrora proibidas sendo atiradas,
sinais vermelhos,
limites escandalosamente ultrapassados 
surdez seletiva aos clamores, medidas de controle
o silêncio compulsório 
com uma mão calejada de antigas mordidas que cobre a boca -- 
para dar nome à fera, 
classificando-a abertamente como ódio?

uma coletânea de ódios sutilíssimos, 
que se repetem numa ciranda discreta
mandos disfarçados, pistas de repulsa velada
que diante de espectadores não passa de uma apatia doméstica 
envoltos em rendas de indiferença, descuido ou impaciência ocasional 
que acumulando desculpas e justificativas 
garantem que você não entendeu,
é coisa da sua cabeça e você só está ansiosa 
ou que é assim mesmo, habitual e ordinário.
quase uma natureza das relações,
acontece nas melhores famílias 
 
a violência pode ser delicadamente refinada.
-- como estar numa banheira morna,
cada vez mais morna,
e ferver até a morte --
não se revela imediatamente, mas antes 
altera pequenos detalhes que parecem sem importância 
te faz relevar ou relativizar certas falas
que seriam problemáticas ou até perigosas, mas não é o que ocorre, 
porque se trata dele, e portanto não é a intenção.

a violência manuseia a realidade como um tecido áspero
que você deve vestir ao avesso. com os alfinetes por dentro
e eles te culparão por não ter outra veste.

o ódio pode ser calmo e manter uma face inexpressiva 
enquanto atira pedras num alvo já abatido.
sem escândalo. sem balbúrdia.
como uma lâmina que desenha gentilmente a garganta
dissimula sua propriedade afiada. um acidente

o ódio nunca se reconhece no próprio reflexo.
nunca responde pelo próprio nome

ele pode impor condições para se parecer menos com ele mesmo, 
como quando ele te exige uma determinada topografia de feminilidade
(mas não o suficiente para incomodá-lo com seu choro)
ou camufla seus preconceitos atrás do que chama de "gostos pessoais"
espera por performances pornificadas no sexo
de uma mulher acriticamente crente e temente a Deus.
ele vai prometer "cuidar" de você 
(oferecendo aquilo que ele define que você precisa)
e você relutantemente dirá que pode se virar sozinha
mas ele insistirá que o amor é essa vulnerabilidade em mão dupla.
então você assente, afinal você não é esse tipo de mulher,
até que, devagar, ele boicota seus recursos pra te ter cada vez mais dependente
e quando as demandas se tornam cronicamente incômodas, ele detém o luxo
de abandonar a própria cria. 
ele nunca teve nada a perder.

são cotidianos e pontuais gestos de violência 
perdoados como inerentes a uma "natureza" masculina.
o sofrimento como um destino inevitável do gênero 
-- de quantos massacres sistemáticos você precisa
para declarar a si que esse homem te odeia?

a verdade é um soco no estômago --
você precisa que ele desenhe
no seu corpo?

e não te odeia de hoje
não te odeia a partir de agora
de repente, de súbito 
do dia para a noite
ou porque você fez alguma coisa

mulheres não sabem reconhecer gestos de ódio
porque eles costumam vir acompanhados de
"eu amo você"

lentamente ele passa a pedir desculpas com mais recorrência
até que ele para --
porque não faz mais diferença ser ou não perdoado.
e as falas saltam pra dentro sem retratação
porque dessa vez elas são exatamente
o que elas querem dizer 

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