em 26 de maio
como orienta o manual, uso o gelo
mas não é o bastante para me "interromper"
então recorro a molhar a cabeça uns minutos
mas
a pressão da água sobre a pele, o som estalado ao alcançar o chão --
aperto os olhos fechados. não suporto constatar sucessivamente
o desvelar-se das atividades diárias mais ordinárias na tua ausência
esse vazio de ti uma escolha tua
repetida repetida repetida --
eu ainda guardo, no vértice das paredes,
na prateleira ao lado do chuveiro,
aquele último caco de espelho
da penúltima discussão que vivemos
quando eu ridícula acertei em cheio
o reflexo de mim sendo deixada para trás.
não uma arma, mas um souvenir.
eu ainda guardo, sobre os livros que pesquei algum trecho pra te ler,
a mecha do seu cabelo, no hábito de acertar as pontas,
envolta numa fita vermelha
nunca fizemos aquela tatuagem
os eletrodomésticos do apartamento que não alugamos
estão na minha garagem
meu útero é uma papoula ressequida e nunca
vai inventar algo com você
não durmo no meu próprio quarto desde que você saiu
levando os pertences que eu achei que
seria seguro colocar de volta nos lugares originais.
e ainda vou encontrar, por coincidência,
muitos e muitos objetos
lembranças materiais de dias que
não saberia recitar de cor a rotina
mas tenho certeza
que dissemos eu te amo uma dezena de vezes
e só dormimos depois de desejar uma boa noite.
eu seria melhor, se pudesse,
mas eu fui tudo que te pude entregar
assombrada pelas certezas absolutas que não se cumpriram
quando eu choro, não sei falar nada mais que
Deus --
por favor --
então entro num consenso e peço para partir
ser levada para onde eu não sinta absolutamente nada
que a agonia do abandono não frature a lindeza dos teus olhos
e eu possa ao menos suportar que você soube como seguir
como os outros sempre sabem
essa disposição natural de não ser tão profundamente afetado
e de ser capaz de manter uma parte de si segura e imune
aos riscos que o outro oferece
enquanto eu despedaço
cada traço
da minha identidade e
do meu rosto,
sei que sou um corpo terminantemente assombrado
e que um corpo "não precisa ser um quarto"
para ser demolido