sorte a sua não estar na minha pele

benção essa sua de não estar na minha pele
esse tecido sem derme, cronicamente inflamado
de uma queimadura hereditária e epigenética 
onde tudo sob o mundo é desregulado
fora do lugar, avesso à temporalidade convencional
inerente essa (in)cisão profunda

maldição a minha de estar exatamente em mim
e, mesmo fisicamente longínquo como nunca,
você continua como-se
rastejasse sob a minha pele
feito um verme-coágulo a
mastigar cada viela intersticial
regurgitando minha ruminação 
restando disso um vão carcomido, 
-- um organismo puído
à beira da auto-extinção 

sorte a sua contar com esses reforços negativos
ao manipular mulheres como sua anestesia
para essa espiral descendente e oca no teu peito.
você não percebe o vazio porque é ele
que constitui o que você entende por si-mesmo
e por isso você trepa
em qualquer coisa aparentemente viva
como um liame parasita 

eu ainda vou acabar numa vala indigente
que eu mesma cavei, com terra sob as unhas
seguindo suas orientações sobre 
cultivar um jardim peculiar 

sabe, subitamente, os cacos começam a se encaixar
a ausência nos finais de semana
e a consciência-bigorna cedo na segunda-feira 
um arsenal de minúsculas pistas vermelhas
que mulheres ignoram em prol do "ficar tudo bem"

e você está para uma criança com terror noturno
como eu para o monstro debaixo da sua cama
porque eu tenho as provas e as palavras
e te apavora quando eu transformo em verbo
as suas transgressões contra minha humanidade

e é nesse momento que você saca do cós o argumento
de que isso tudo é só porque
eu sou louca
e todos os demais clichês misóginos 
cuja ilógica sempre zombávamos juntos
-- mas agora a piada é você 

porque a sua intenção -- e pode ser que você mesmo não perceba 
tamanha é a ego-sintonia -- é que eu me alie a você 
como carrasco de mim mesma
e que eu engula a culpa como um vermífugo amargo
que eu me julgue burra para ser você semi-inimputável 
que eu me sinta insuficiente para que
minha suposta mediocridade por si justifique
qualquer limite que você tenha ultrapassado

você quer que pareça que eu te induzi ao erro
como se você fosse uma entidade ignóbil passiva 
porque te traz algum conforto essa narrativa 
de que a minha escolha por sobreviver 
foi determinística pra você perder as estribeiras
acumulando as mentiras
que você chama de "mal-entendidos"
-- a violência nunca é um simples equívoco 

e infelizmente eu não posso evitar odiar essa mulher
ao passo que também não posso evitar odiar a mim
(porque é o ódio contra si mesma 
que constitui a experiência existencial feminina)
devido esse resquício estrutural de que somos nós as inteiras responsáveis
por manter aceso e ativo o interesse fiel dos homens
e que quando isso não acontece, 
a falha é estritamente nossa e intransferível 
e de imediato essa nova mulher ocupa minha antiga posição, ainda quente,
eleita como privilegiada 
por ser melhor, mais saudável e mais apta 
por fim, por atuar com maior talento 
a personagem que mais te satisfaz

então eu me torturo mais um pouco
contemplando esse seu amor relâmpago 
enquanto espalho todo meu amor pelo chão do quarto
e abandono os vestígios por onde passo
tendo que esfregar com alguma esponja depois
eu me torturo mais um pouco, brincando
com o produto vasto sob a pele
assim como você brinca com minha saúde 

você me procura enquanto eu cavo a vala
-- que é, na verdade, seu palco --
e me inunda com dizeres adocicados
veja, até mesmo os sabores têm sido deturpados 
e minha língua já não reconhece o veneno

me pergunto se ela sabe o que você me diz
claro que não. afinal, ninguém poderia jamais saber
o que você faz comigo quando ninguém vê 

eu te forneci as contingências necessárias
para repertório verbal sobre a verdade
mas eu já inferia, pois a esquiva
é um texto claro e objetivo

eu tento evitar 
conformidade com seus planos 
ao compor seu exército de uma mulher só 
na força-tarefa 
de me fazer sentir insólita, um ambiente insalubre
onde aqueles que exploram saem corroídos
-- é só assim que você me quer 

a "garota legal" é uma novela
cujo epílogo é uma mulher explorada 
e moribunda

você me trata como um rato na caixa
falhando em pressionar a barra
por isso levando choque nas patas
eu pareço algo próximo de uma forma humana assim
sentada tangente à parente, em choque
deixando secar o sangue onde tocam os pulsos

sorte sua não estar na minha pele
porque eu ainda vou acabar numa vala
tentando enterrar o que você matou

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