29 de junho
saber que ainda há pesadelos
a serem brutalmente descortinados
que a carnificina não se dá por encerrada
e que seu objetivo é apenas pôr panos quentes
-- na lógica maligna de que
a ignorância é protetiva
é como
quando tanques inimigos se aproximam
de um bairro residencial
e param na esquina --
você assume essa clássica postura defensiva
manipulando os eventos para que eu não
tenha acesso a algo potencialmente revelador
-- a caixa de pandora nas suas mãos
que você retira das minhas em reflexo
essa elipse torna tudo muito escancarado
eu te dou novas segundas chances a duras penas
mas quando diante da minha desconfiança
(com razão de sê-la)
você emite alguma verbalização grosseira
por descuido e para descarregar a frustração
-- o corpo já demasiado ferido
sangra mais fácil
a pele é mais fina
a lesão, mais funda
contra-vontade, o rompante
me desmancha em público
te preocupam os olhares de soslaio
e disso virar caso de polícia
-- agora eu te trago problemas apenas por
chorar --
é por isso que você me ronda
e tenta interromper a cascata
apenas para conter a horda
isso de que as lágrimas chovem nos meus seios
ou de como me cubro com suor mesmo frente ao vento
-- você não enxerga
senão como adendos
encolhida no vértice do corredor, entre garrafas vazias
engolindo calmantes pra poupar o seu sistema nervoso
você despeja sua ansiedade
e agora eu sou a mulher que "enche o saco"
que "perturba" e é capaz de estragar dias inteiros
segundo você, eu primeiro estou
"desregulada"
-- e a palavra na sua boca
consegue tornar-se ácida --
como algo que acontece out of blue
e sobre o qual você não tem gerência nenhuma
e só quer que eu vá logo pra casa
morrer isso entre quatro paredes
onde ninguém testemunhe
assim você me faz ter vergonha
até do modo como eu sinto
e continuamente eu me convenço que exagerei
tento chorar bem contida
e não envolver terceiros na história
mesmo que precise de ajuda
depois que você me deixa sozinha
eu já não sei se o que vi foi visto certo
ou se minha interpretação é confiável
minha natureza é ceder.
no final da noite você só lembra
o quão é amado
você leva as pessoas ao limite
até que elas percam o último fio de razão
e, aí sim, cometam alguma falta
que suplante a sua
-- um olho por um olho
mas eu não saberia diferenciar os nossos --
para carnificar o que acontece no privado
esse corpo auto-concretiza o núcleo externo
e reproduz primitivamente a violência
uso a dor física, afinal
-- é só o que alcanço
no outro dia estão os braços inchados de mordidas
a velha luxação na mão direita por socar as paredes,
e uma fratura no pé por só saber
o que fazer com a raiva
fazendo algo contra mim
no entanto
em meio a isso, úmida e viscosa,
no chão, com a cabeça entre os joelhos,
eu quase retomo a respiração
só por sentir seu cheiro
e lembrar o que ainda somos capazes de fazer
sozinhos