traição
o bote arisco mas também o veneno
de ação l e n t a e prolongada
família com a mentira parental,
o pecado dos ateus e
abuso psicológico ressuscitado
de agressões pré-históricas.
primeiro a incredulidade
o "não" imediato, compulsório,
uivado contra a corrente,
a dissociação nos olhos secos e vidrados,
até num meio sorriso irônico --
"não é possível" --
deseja-se que seja sobre outra pessoa
e coincidência o mesmo nome.
porque não parece caber na,
é incongruente com a realidade.
essa que demora a ser processada,
e o faz dia após dia arrastado.
necrosando o organismo
de
va
ga
ri
nho.
revirando as memórias, encontra-se pistas
em episódios antigos
quase reluzindo.
desponta a obsessão por construir a linha do tempo,
e a paranóia de tempestades de sinais agora,
detalhes que no passado seriam irrelevantes
-- de repente uma horda deles ganha sentido
a conclusão de ter partilhado a lida com um estranho
em beco mal alumiado.
imprevisível.
afinal, aquele que eu amo jamais --
padecem em cascata os momentos plenos.
são inválidos, menos críveis, até farsas.
-- será que ali já...?
genocídio supremo é ter de farejar
ao invés de ser algo previamente dado.
como fosse em busca do próprio suplício,
como cativasse a via crucis particular,
na urgência de ter acesso aos fatos.
-- ao invés dessas desculpas vagabundas
o esforço de outrem para esconder,
esse planejamento perverso
tomando medidas complexas pra ocultar,
é simplesmente contrário à lógica.
despender tanta energia para omitir,
mas optar por não desperdiçá-la
com um diálogo franco.
sim, meu querer é relativizar,
pôr em cheque,
amenizar a responsabilidade
acreditar que não houve tanta intenção assim,
que foi caso de impulsividade,
pra deslizar menos corrosivo na garganta.
mas é um querer que não se sustenta.
havia conhecimento integral do choque séptico induzido
e não só foi algo feito, como se prosseguiu fazendo.
não adianta deturpar em eufemismos
escolhas deliberadas pluralmente ruins.
o descontrole argumentado é seletivo.
no fim, era uma questão cabal
de conter o membro por um período,
não arrancaria pedaço,
não configuraria uma castração.
o pior, talvez, é que o amor é persistente
e não se dá por vencido por evidências
de carência de reciprocidade.
você quer tomar o erro nos braços,
prover colo, niná-lo, cama compartilhada.
fazê-lo neurocompatível.
não.
é coisa que retorna, não se rende como concluída.
cada menor movimento suscita desconfiança.
conjectura-se cenários mais graves
que aos poucos se revelam verossímeis.
enxerga-se potencial destrutivo em todo estímulo.
então me acho burra por não ter notado antes.
e usada por estar ali disponível concomitantemente.
inadequada e inútil por não ter sido "o suficiente"
para não provocar essa cadeia.
racionalmente é tudo muito óbvio, qualquer um
discordaria das minhas elucubrações
mas aqui de dentro, a culpa salta personificada,
como algo eu parido errado.
investiga-se os detalhes, porque se faz neles morada.
torna-se uma inquilina indesejada.
o presente é uma entidade revogável.
estou ali, com eles, entre eles e seus corpos aquecidos na fricção.
tendo a dissecar os pronomes e advérbios -- o quê, como, onde, quando, quanto.
tendo a me deter nas terceiras pessoas.
-- estaria eu esperando-o chegar do trabalho?
foi por isso que não respondeu aquela minha mensagem?
e aquele show que não pude acompanhá-lo?
e o celular que carregava consigo até para o banheiro?
a frequência de dormir às duas da manhã?
as vezes que neguei sexo após aumento dos antidepressivos?
e essa nova maneira de segurar o cigarro entre os dedos? --
torna-se hipervigilante e reativa
ao que parece socialmente desproporcional,
fidelíssima aos sintomas de trauma,
os olhos quase num nistagmo
o despertar taquicárdico de madrugada
com a exumação de um grito rouco.
torno-me alguém que não me quero exequir,
que transgride os valores mais basais.
demasiado urgente por contra-controle
a fim de fazer do ambiente menos ameaçador.
-- não é necessário dizer
que não funciona assim.
generaliza-se. viv'alma alguma é digna de confiança.
vislumbro más intenções como sombra de todo gesto.
"então é assim que as pessoas fazem"
é da natureza humana. e eu nem cria nela.
é de tal forma que meu corpo,
amplificador filogenético,
nesses termos, emite um elogio
à traição.
uma diálise na qual a impureza e a peçonha
trocam-se com o sangue.
e quando eu narro assim,
me censuram que não é pra tanto
"é só um homem que não tinha ideia" --
mesmo a intoxicação é acidental
e por esse privilégio atenuante devo eu
morrer abarrotada
com os nomes próprios com os quais
são as más escolhas batizadas.