apoteose

estranho é o som do meu riso na tua ausência 
reverberando uma vibração em acústico 
nas vísceras do corpo-estúdio
parece irmão com o inapropriado e o indevido
só o ato de ser qualquer coisa longe de você se reveste de infidelidade 
-- é esse o domínio imperialista que você exerce --
tais maneirismos meus são estrangeiros 
tenho eu travessões?
- o que é isso que eu digo agora? 
não conheço o corpo que se desgarra em mitose 
me habituei a me definir
através de você 
no cerne da rua, 
como um maldito pedaço seu foragido 
que peca ao estar desvencilhado 

julguei certo meu contato com o mundo 
estritamente por trás da tua pele
-- como fosse possível filtrar a aspereza intrínseca 
e mais seguro viver indiretamente --
uma figurante em cena
decorando seus atos 

sozinha estou então solta demais
penso que é inacreditável 
que minhas funções fisiológicas sigam 
um curso natural 
penso que é inacreditável 
que exista um quê de natural
em qualquer contexto alheio de ti

penso que é imperdoável 
que o fluxo da vida ordinária continue apesar-de

a certeza de nós como entidade irrevogável 
era ainda mais proeminente 
que qualquer evidência científica sobre as nuances do universo
e que qualquer senso constituído sobre meu self
-- agora um conceito esparso e volátil 
eu sabia ser apenas a poeira estelar perene em teu corpo
levantando a engolir o ar quando teus passos imprudentes

presente eu me faço dos teus vestígios 
escavando os fósseis da minha espinha
datados por carbono do prelúdio dessa era
quando tudo a que me atentei naquele transporte coletivo
naquela tarde de sexta-feira última de outubro
naquele fúnebre ano final de pandemia
foi teus olhos faixa verde-dourada 
sobre a máscara de tecido
-- como fossem sobre mim sobre-mim

você atira seu anzol
sem necessidade de isca
pois são tuas as mãos que o tocam
ele escarnifica meu olho 
você me puxa em direção a si mesmo assim
-- é dessa forma que somos compatíveis 

me sinto em casa como as espécies
que só conhecem o cativeiro o fazem

eu me preparo em minúcias como um banquete humilde 
quando você entra é como incorporar uma divindade 
seu gemido no lóbulo da minha orelha é a língua 
dos anjos 
é uma profecia sobre o êxtase por vir 
é o exato som que denuncia o arrebatamento
comungo quando você urra em orgasmo
engulo obediente toda a hóstia consagrada 
-- sou ungida
tua semente minha origem de vida 
você desaba seu corpo úmido de sal sobre o meu 
e eu te amparo sobre meu peito
-- você é perfeito --
me faço uma fiel ajoelhada por ter sido escolhida
mesmo tendo a fé provada por tantas expiações 
te confesso pecados contra ti travestidos de autocuidado
e me considero abençoada por ter te servido

nessas horas apoteóticas de mania nem parece 
que nossas promessas de permanecermos unidos 
estão mais próximas, na verdade, 
de pactos com os demônios
com esses sacrifícios humanos
nessas línguas mortas
e em tais rituais custosos e arbitrários 

quando você atravessa a soleira, satisfeito
visto meu corpo do deserto 
e ponho novamente 
minha cruz de estimação sobre os ombros 
-- eles agora com marcas 
das tuas mordidas 
que ganham minhas nostálgicas carícias 


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